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Em agosto, capeias a gosto

Opinião

Fustigado pela intensa emigração dos anos 60, o concelho do Sabugal privou-se de muitos dos seus mais intrépidos homens e mulheres que, na busca do Eldorado, partiram para franças e araganças. Mas foi, sobretudo, na zona do concelho mais fronteiriça com Espanha, que a sangria mais se sentiu.

Partiram, e por lá desbravaram, entre atalhos e veredas, caminhos até portos de esperança por aqui perdida. E no mês de Agosto regressam. Regressam com uma mão cheia de sucesso e outra mão cheia das memórias, dos laços, dos afectos e dos vínculos que dão sentido à vida e à vinda.

Por entre o enovelado das memórias, a festa destaca-se pela envolvência da comunidade, espaço de construção do sentido de pertença e de identificação com o colectivo. E por isso se regressa, se vem à terra, à terra onde estão as raízes, as origens e um espaço de memória colectivo.

A festa de cada uma das localidades é o ponto de encontro, a marca de um calendário religioso/profano ou ambos, que convoca todos a estar.

De entre as muitas e diversificadas festividades do concelho, a Capeia destaca-se pela sua singularidade e originalidade – utilização do forcão na lide do touro bravo -, e pelo facto de ser uma manifestação comum a muitas localidades. A Capeia é, assim, a expressão de cultura popular aglutinadora de uma identidade territorial mais abrangente que o espaço da comunidade do sítio.

Conforme já aludi noutras ocasiões, «A Capeia é identitária e dá aos membros da comunidade um forte sentido de pertença, criando fortes laços e vínculos à comunidade. A valorização desse património tende a preservar as referências ‘à terra’ – às raízes – e dessa forma estimular, nos que tendo laços com as comunidades, mas nelas não residem, o regresso, pelo menos por ocasião da Capeia. As expressões de cultura tradicional com as quais as pessoas ‘simpatizam’ e se identificam serão tanto mais motivo de vinda / regresso quanto maior for a ‘simpatia’ e a identificação com essas mesmas expressões. E, para uns é a Capeia, para outros é outra coisa qualquer, igualmente importante.

A Capeia é, assim, aglutinadora no regresso, motivação reforçada pela grande probabilidade de reencontros, o que é gratificante por ser tão forte a memória dos afectos e dos laços que perduram. A Capeia é, desta forma, um pretexto de confraternização, de convívio, de partilha, de desejo de estar junto de outros que diferentes percursos de vida separaram.

O êxodo, a emigração, a desruralização, não implicam que os que se afastaram se desliguem das suas origens. A busca das raízes, a centripetía das tradições, das festas, motiva ao retorno enquanto o universo das memórias for povoado pelas reminiscências dos “bons velhos tempos”. Retorno que acaba por se constituir em espaço de reconstrução de memória (o que recordamos do que aconteceu não é o que aconteceu, mas a reconstrução, no presente, do que vivenciámos ou experimentámos), onde se lubrificam as lembranças dos afectos e dos vínculos com novos afectos, novas partilhas, novas experiências.»

Registada no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (INPCI) desde 2011, a Capeia galgou as fronteiras do seu espaço de prática para se afirmar no mapa patrimonial do país. Ganhou a visibilidade e a dignidade que o Inventário lhe confere, mas, sobretudo, promoveu a participação das comunidades, grupos e indivíduos na defesa e valorização do seu património cultural imaterial, objectivo da inventariação.

O reconhecimento que o registo no INPCI conferiu à Capeia, convoca todos os detentores de PCI a encetarem processos de inventariação como forma de envolver as comunidades na defesa e valorização do seu património cultural imaterial, garantindo, assim, a preservação dos laços e dos vínculos que criam um forte sentido identitário e de pertença à comunidade, tão necessários num mundo cada vez mais urbano, anónimo e anódino.

norbertomanso@gmail.com

Por: Norberto de Oliveira Manso

* Antropólogo

** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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