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Elogio da Guarda

Razão e Região

Há quatro dias, Domingo, 27 de Novembro, a Guarda comemorou o seu 806.º aniversário. Hoje, Quinta-Feira, 1 de Dezembro, reúnem-se, em regular convívio comemorativo, os antigos estudantes. Permitam-me, pois, que, em dupla e singela homenagem, me atreva a propor-vos um modesto exercício de reflexão em torno da Guarda.

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Cidade sideral, altiva solidão, realidade espectral. De Vergílio Ferreira a Eduardo Lourenço, ou fragmentos de poética memória que só o abismo profundo do tempo em permanente gestação permite recuperar para o nosso presente. Presente que queremos – nós que também já conhecemos a força anímica e apelativa desse abismo criativo do tempo – deixar como alimento simbólico do nosso futuro gerado, os vindouros. Aquelas são palavras – puxadas lá do fundo de uma antiga e sofrida memória pela força de uma forte emoção pensada – que podem sinalizar uma certa visão metafísica desta granítica cidade de montanha. E a verdade é que a noite da Guarda tem algo de sideral, por força de um especial compositum que parece resultar de uma gélida, mas humana, vertigem induzida pela vastidão límpida daquela cintilante abóbada celeste, para onde, nas nossas noites frias e límpidas, se inclinam, com persistente espanto, olhares já levemente embaciados pela força esmagadora desse encontro sideral.

Altiva só o é porque se eleva até si mesma quando exibe um tímido, contido e teimoso orgulho granítico perante as frívolas exibições humanas de quem não é capaz de sentir a gravidade sideral da montanha.

Por outro lado, essa realidade espectral que Eduardo Lourenço conservava como fragmento de antiga memória, afinal era, creio eu, gerada pelos efeitos subjectivos de uma fantástica visão em gigantesca, luminosa e cintilante abóbada celeste ou, então, um continuum entre o céu e a terra, quando a mítica neve inicia a suave e leve invasão total do nosso espaço vital ou quando o denso nevoeiro torna espectrais as fugidias figuras que se esgueiram pelas frias ruas da Guarda. Visita anunciada, a da mítica neve, por um intenso brilho fantasmático que vai engolindo a diferença até nos confundir com o próprio ar que respiramos. Visita que anuncia a imanência absoluta, o triunfo do ser e o fim da diferença. É verdade. A invasão branca do espaço vital representa a mais forte e clara visão da irrupção da imanência total, lá onde os géneros se confundem e onde o movimento assume, de facto, uma aparência algo espectral.

São, pois, densas de significado essas palavras que os nossos maiores escolheram para chegar ao centro da antiga memória que imperceptivelmente lhes foi atravessando a imaginação criadora. Solidão sideral e espectral: são palavras que nos abrem as portas metafísicas de uma melancólica e granítica existência secular, por onde o destino quis que irrompesse a nossa singular existência.

É claro que tantos séculos de história marcam a mais moderna das visões. A própria natureza tem história. Uma história mais lenta, é certo, mas uma história de implacáveis mutações. O frio já não é tanto, tão persistente e tão sofrido. A marca humana parece ter deixado nele cicatrizes tão profundas que quase o tornou residual. A neve já nos visita menos vezes e de forma menos intensa. E deixou de ter essa fugaz capacidade invasiva do nosso quotidiano, permeando-lhe a cadência e envolvendo-o na sua leve, suave, mas persuasiva linguagem. É verdade! Mas o espectro sideral lá continua. E a vontade de desvelar o seu eterno mistério lá permanece ancorada e renovada na memória mais tenra dos seus filhos, por mais vidas que vivam ou mundos que percorram. Se calhar o reencontro metafísico com as raízes até é mais profundo quando se vive a diferença, seja ela qual for. A identidade, essa, procuramo-la na estética dessa imanência branca e cintilante.

Falar da Guarda não é fácil se não falarmos do seu passado denso e em permanente reconstrução simbólica e não a projectarmos nesse futuro em construção que é uma Ibéria em forte progressão europeia e em União. O nosso passado em permanente reconstrução reconduz-nos ao orgulho de uma identidade antiga, celebrada e recriada sempre sob o fio da memória, mas projectada num futuro que queremos construir com a mesma vontade granítica com que os nossos antepassados foram duramente sobrevivendo às duras leis da vida: da natureza e dos homens.

Esta Guarda é o pilar da nossa própria identidade.

Por: João de Almeida Santos

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