Pouco depois do anúncio da morte de Bin Laden começaram a surgir as primeiras dúvidas sobre a veracidade da notícia. O primeiro pretexto foi a divulgação de uma fotografia do cadáver por uma televisão paquistanesa. Não tardou que se mostrasse ser essa fotografia uma fotomontagem, aliás oriunda de adeptos de uma teoria da conspiração segundo a qual Bin Laden estaria morto há vários anos e que o não anúncio da sua morte teria como objetivo o prolongamento da ocupação americana do Iraque e do Afeganistão. Curiosamente, a demonstração da falsidade dessa fotografia acabou por inquinar, para muitos, a credibilidade da notícia da morte de Bin Laden. É evidente que uma coisa nada tem a ver com a outra, que a prova da morte nada tem a ver com a autenticidade da fotografia – e nada teria, mesmo que se demonstrasse ter sido falsificada pelos Navy Seals, as tropas especiais que concretizaram o ataque.
Interessa-me isto porque há entre nós uma grande dificuldade em compreender os conceitos de prova e de verdade, dificuldades que têm interferido com a aplicação da justiça e com a aceitação das decisões dos tribunais. Isto tem a ver com os conceitos de causa e efeito, e dou outro exemplo. Uma freira alega ter sido curada de Parkinson por interferência do falecido João Paulo II. Ao Vaticano bastou, para considerar a existência do milagre (e a sua atribuição a João Paulo II), a inexplicabilidade científica daquela cura. A razão da atribuição desta àquele específico papa reside na circunstância de a freira curada o ter em especial devoção. Mas será isso bastante? Poderemos replicar este raciocínio noutros campos? Podemos, por exemplo, condenar alguém a vinte anos de prisão com base na mesma lógica? E em sentido inverso: podemos duvidar da morte de Bin Laden apenas porque alguém divulgou ao mesmo tempo uma falsificação da prova dessa morte?
As respostas a estas perguntas deveriam ser fáceis, tão fáceis que as perguntas nem deveriam ser feitas, mas a verdade é que muitos julgamentos e muitas decisões erradas têm como ponto de partida a incompreensão das questões subjacentes. Tudo isto tem a ver com lógica e com a relação causa-efeito, no sentido que os juristas lhe dão: x provoca y, sendo adequado a provocá-lo. Se deixar cair um copo ao chão, largando-o, o copo parte-se, porque é o que normalmente sucede aos copos que se deixam cair. Não é legítimo a quem explique o sucedido apropriar-se de um momento, escolhido por si, do processo causal para decidir arbitrariamente a causa. Pode ir mais fundo: antes do copo cair, fulano tocou no braço que segurava o copo; e ainda mais: fulano tinha sido empurrado por sicrano. Fundamental é que, como na ciência, a experiência seja repetível e com o mesmo resultado verificável. Em qualquer caso, deverá ser isolada a causa sem a qual se não teria verificado aquele efeito. Karol Józef Wojtyła será um dia declarado santo? Só por milagre, mas as opiniões dividem-se.
E Bin Laden, morreu ou não? Se não morreu ele próprio se encarregará de fornecer as provas, por exemplo mostrando-se vivo na Al Jazeera. Enquanto sim e não, até porque não convém ficar muitos anos nesta incerteza, temos algumas boas regras de civilização: dez anos depois do 11 de Setembro, veio pela primeira vez um presidente norte-americano anunciar a morte de Bin Laden. Até prova em contrário, por exemplo a que acabei de sugerir, demos de barato que é verdade e gastemos as nossas energias em tentar descobrir uma solução para os verdadeiros problemas que temos.
Por: António Ferreira