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E Esqueçamos o Assunto

Faz agora um ano que rebentou o escândalo sobre os projectos de obras no Concelho da Guarda assinados por José Sócrates nos anos oitenta do século passado. Não era só o facto de as construções serem feias, o problema é que alguns espíritos mais mal intencionados sugeriam duas coisas desagradáveis: que Sócrates, na altura funcionário da Câmara da Covilhã, estivesse a pagar, com a sua assinatura, favores a técnicos da Câmara da Guarda que lhe prestavam favores semelhantes na Covilhã; e que os projectos de Sócrates, até por serem na realidade de técnicos da Câmara da Guarda, recebessem tratamento de favor na altura da sua aprovação, por exemplo sendo aprovados muito mais depressa do que seria normal.

A Câmara Municipal da Guarda poderia ter simplesmente dito que sobre esses factos tinham passado mais de vinte anos e que, por isso, não tinham os mesmos qualquer interesse. As eventuais responsabilidades disciplinares, civis ou até penais estavam mais do que prescritas. Mesmo que houvesse alguma ilegalidade, esta tinha deixado de ser relevante. Para além disso, passados tantos anos, quem se podia lembrar com alguma certeza dos pormenores? E se é verdade que as casas eram feias, atendendo a que se tratava dos anos oitenta, quem há por aí que se atreva a atirar a primeira pedra?

Havia um problema mesmo assim. Não bastava a Sócrates que se dissesse que tanto tempo decorrido era o suficiente para apagar qualquer eventual falha da sua parte. Mesmo sabendo a opinião que o povo português alimenta sobre a classe política, em quem mesmo assim vota, ele, Sócrates, queria provar ao povo português a sua total inocência. A Câmara da Guarda quis ajudar, até porque a historia, mesmo sendo já juridicamente irrelevante, podia ajudar a definir um padrão de comportamento numa análise histórica das décadas de gestão socialista – e decidiu instaurar um “rigoroso inquérito” ao caso.

E é assim que, em pleno escândalo Freeport, a Câmara da Guarda anuncia a Portugal e ao Mundo que, passado quase um ano, as conclusões do seu rigoroso inquérito estão em condições de ser apresentadas. A principal conclusão é, surpresa!, que os projectos de Sócrates, afinal, não tiveram qualquer diferença significativa, em seu benefício, em relação aos tempos de aprovação dos restantes. Para isso, socorreu-se a comissão de inquérito internamente constituída de dezoito processos, “aleatoriamente escolhidos, contemporâneos dos vinte e cinco analisados de José Sócrates.

Poderá o leitor surpreender-se com o facto de ter demorado quase um ano a escolher aleatoriamente dezoito processos, a recolher de cada um a data de início e a de fim, a calcular o número de dias entre essas duas datas e a fazer a média, a fazer o mesmo com os vinte e cinco processos de José Sócrates e comparar os dois conjuntos de dados. Algum leitor mais sarcástico e conhecedor de, por exemplo, Excel, dirá que faria o mesmo trabalho em dois dias e que, em vez de escolher aleatoriamente apenas dezoito processos, introduziria sozinho nesses dois dias as datas de entrada e fim de todos os processos de obras da Câmara da Guarda nos anos oitenta, faria a média e tiraria conclusões exactas, objectivas e verificáveis. Era isso, a fazer-se alguma coisa, que se deveria ter feito. Mas era definitivamente melhor ter esquecido o assunto.

Por: António Ferreira

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