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Duas leituras

Atmosfera Portátil

1. No genial filme “The Shining” do genial realizador Stanley Kubrick, a loucura apodera-se de Jack Torrance (Jack Nicholson) enquanto tenta arranjar inspiração para escrever o seu livro no isolado Overlook Hotel. O estado mental de Torrance sofre alucinações progressivas e a espiral de violência psicológica adensa-se perigosamente junto do resto da família. Numa determinada sequência do filme, a mulher de Jack Torrance, Wendy (Shelley Duvall), descobre, horrorizada, que o marido tinha passado dias a escrever, obsessivamente, a mesma frase na máquina de escrever: “All Work and no Play Makes Jack a Dull Boy” (tradução livre: “muito trabalho e pouco divertimento torna Jack um rapaz irritado”). Começa nesta cena, aparentemente banal e inconsequente, a descida aos infernos encenada por Kubrick de forma absolutamente terrorífica.

Jack Torrance escreveu dezenas de páginas com a mesma frase, apenas disposta na folha branca de formas diferentes, jogando com o efeito visual das palavras. O filme de Kubrick foi baseado no livro de Stephen King, e nesta obra do mestre do terror contemporâneo, a personagem de Jack Torrance nunca conclui o livro (visto que acaba por mergulhar num turbilhão de loucura e violência). Por isso, um jovem artista e escritor inglês, chamado Phil Buehler, fã de King e de Kubrick, resolveu assumir o papel de Jack Torrance e “escrever” o livro que o personagem do livro e do filme nunca editou. Ou seja, Phil Buehler escreveu um livro com 80 páginas inspirando-se no que Jack Torrance fazia no filme: apenas com a frase “All Work and No Play Makes Jack a Dull Boy”, Buehler contruiu múltiplas formas visuais (geométricas, abstractas…), como se incarnasse o verdadeiro espírito atormentado de Torrance. Resumindo: um livro real de um escritor de ficção.

2. Adolf Hitler era mais conhecido por queimar livros do que como um leitor. Mas a sua biblioteca pessoal mostra que o ditador alemão era um bibliófilo apaixonado, que tinha obras clássicas, de história, de viagens, biografias, religião, filosofia e estudos sobre ciências ocultas, entre muitas outras referências literárias. Segundo os historiadores, o ditador Nazi tinha, no total, 16 mil livros. Muitos deles, com notas manuscritas nas páginas, marcações, apontamentos… Não era um leitor sistemático e compulsivo, mas era capaz de ler um livro numa só noite. Tinha sempre livros à cabeceira, junto a uma chávena de chá. Apesar da sua obsessão por enaltecer o espírito alemão ao longo do tempo em que liderou o Terceiro Reich, Hitler considerava Shakespeare superior a figuras centrais da literatura alemã como Schiller ou Goethe. “Dom Quixote” e “Robinson Crusoe” faziam parte das suas leituras preferidas, dois romances que mais apaixonaram o ditador.

Fruto de um estudo apurado, o jornalista e historiador Timothy Ryback escreveu o livro “Hitler’s Private Library: The Books That Shaped His Life”. Nesta obra de grande fôlego histórico, o ensaísta explora de que forma as leituras do responsável máximo pelo Holocausto moldaram a sua visão da vida, do mundo, da relação com o poder e do ódio aos Judeus. O autor pesquisou na Biblioteca do Congresso dos EUA, onde encontrou mil e duzentos livros pessoais de Hitler. Outros foram encontrados na posse de familiares de militares americanos e europeus que participaram na 2ª Guerra Mundial. Segundo a crítica internacional, este livro lança um novo e interessante olhar sobre a formação intelectual do líder Nazi, contribuindo para uma compreensão mais aprofundada do processou que Hilter desenvolveu na evolução da ideologia nacional-socialista através de leituras filosóficas, históricas e esotéricas. Em resumo, estamos perante uma renovada interpretação de um dos homens e políticos mais determinantes do século XX, à luz dos milhares de livros da sua colecção privada. “Hitler’s Private Library: The Books That Shaped His Life” foi editado no final de 2008 no mercado internacional e, esperemos, terá edição portuguesa no decorrer de 2009.

Por: Victor Afonso

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