Arquivo

Doze mil e quarenta e três dias depois

O vento soprava com alguma intensidade embora estivesse um dia cheio de sol. Sentei-me numa rocha e agarrei no caderno para anotar pequenos e grandes pormenores para o projecto em causa. A paisagem algo agreste que vislumbrava daquele ponto alto levou-me a uma pausa. Agarrei num cigarro. O vento que soprava de frente não o permitia acender. Escondi o isqueiro por entre as mãos até conseguir. Olhei em volta e aproveitei aquele momento de paz e descontracção e veio-me á memória que um simples acto como este, seria considerado impróprio, aliás necessitaria de uma autorização. Regressei ás anotações e de repente fui interrompida pelo grito de boas vindas da Joaninha. Vinha de bicicleta desde a aldeia e ao chegar ao pé de mim abraçou-me ofegante e beijou-me com a audácia e ternura de uma criança que será sempre criança embora a idade já lhe pese nas pernas. Sentou-se ao meu lado e contagiou-me com a sua alegria e felicidade pela aventura dessa tarde. Olhei para aqueles olhos ternurentos e pensei no que esta pobre alma poderia passar antes de 1974. Não seria ninguém, não teria quaisquer direitos nem oportunidades e a tarde magnífica que tinha tido ser-lhe-ia completamente negada por não possuir as exigências mentais necessárias para uma licença para pedalar.

Regressei aos apontamentos por entre as palavras e sons desordenados de Joaninha. Tinha algo complicado para resolver no projecto que necessitaria de investigação e experiências no campo. Apontei alguns itens e a minha mente recuou de novo para a época do fascismo. Tudo o que se passara naquela tarde seria censurado e a minha possível investigação seria tingida como pretensão comuna. Larguei o caderno e segui a Joaninha que me pedia já á algum tempo para a seguir pois esperava-nos um lanche delicioso, uns “bolinhos que falavam espanhol” que a tia Lurdes tinha trazido “do outro lado”. Agarrei naquela mão gorducha e desfrutei aquele momento com toda a intensidade e no meu intimo desejei agradecer a todos os que lutaram pela liberdade que possuímos!

Por: Carla Madeira

Sobre o autor

Leave a Reply