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Do tempo do país

Theatrum Mundi

Segunda-feira, 5 de dezembro, 8h39 da manhã. Apanho o Intercidades na estação do Oriente com destino à Guarda, mas hoje hei-de sair antes, em Coimbra B. Já dentro do comboio ponho-me a pensar que este, pelo menos, não deverão “eles” cortar, por muita austeridade que possa vir por aí, por muito que a vida tenha de mudar nos próximos tempos e por muito mais empobrecimento que “eles” nos venham ainda a prometer. Afinal – concluo em pensamento – estamos a falar das duas principais linhas férreas do país, a do Norte e a da Beira Alta, estratégicas para estruturar o país e o ligar à Espanha e ao resto da Europa. O comboio vai cheio. Com sorte, a crise trará por fim os amanhãs que cantam do comboio em Portugal.

Será, mas a conclusão não me deixa totalmente tranquilo e o suave balanço do comboio parece querer levar-me numa viagem em direção ao passado. As cores e paisagens outonais dissipam toda a noção do tempo. Olho pela janela e já não sei bem em que país estou, se no da crise se no de antes da crise, se no de outras crises que vieram antes. A ténue bruma que paira sobre a região de Fátima, e o sol que timidamente procura irromper através dela, devolvem-me as agruras de um século que passou, as frustrações de um pais atrasado e sem remédio, as lutas contra quem manda mal e as traições obscenas contra quem obedece sem perguntar porquê. Mas também as promessas de um futuro melhor, a crença tantas vezes cega no progresso e num destino diferente. E sobretudo a convicção de que não há volta atrás, de que o mundo não funciona assim, ou já não funciona assim, ou pelo menos não nesta parte do mundo em que finalmente nos

deixaram entrar. A Europa.

A minha é a geração do 25 de abril (assim, com letra minúscula – acordo ortográfico “oblige”), a que nasceu com ele e cresceu com os seus símbolos e promessas. Mas também é a geração da Europa, porque uma coisa não vem sem a outra. De resto, uma promessa veio com a outra. E num plano diferente, mais regional, mais guardense, também é a geração da Espanha, a primeira que se habituou a olhar para o outro lado da raia sem tanta desconfiança – até com alguma admiração – partilhando imagens e símbolos, graças à TVE. Eram outros tempos, eram os anos 80, de outras crises e, ao mesmo tempo, fundadores da democracia e do milagre da unificação europeia. Uma geração que cresceu com a ilusão de um país novo numa Europa nova. Pelo início da década, estava ainda bem arraigada na consciência coletiva a ideia de que mais pobre que Portugal só a Albânia. Dez anos depois ou pouco mais, o suposto país novo também engendrara uma nova consciência, uma nova exigência e a ilusão de que tudo havia mudado. Com a Europa, a sua exigência, os seus padrões e critérios. A mesma Europa, essa que atirou os periféricos para o progresso pelo endividamento e o consumo do “gemacht in Deutschland”.

Será este o tempo do fim das ilusões? Nestas coisas vale a pena ser assim taxativo. De resto, é sempre falacioso falar do fim das ilusões enquanto ambição renovada, esperança, convicção – seria demasiado desesperante, cruel e até infundado admiti-lo. A esperança no futuro do país e da Europa não desaparecerão, outras gerações empunharão porventura a bandeira destas e doutras promessas. Por algum tempo contudo, ficará a sensação de que fomos traídos, de que fomos defraudados, de que o bem pessoal de alguns primou sobre o bem coletivo – o de todos. De que estragaram tudo. E que o país novo, democrático e europeu não foi mais que a imagem útil para quem ambicionava apropriar-se do país. Do tempo do país.

Por: Marcos Farias Ferreira

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