Arquivo

Do acto de escrita

“Todo o acto de escrita é um acto de impudência”, disse Nietzsche. Urge lembrá-lo. Não sabemos tudo e o que escrevemos é pessoal, parcelar. Não poderia ser de outro modo, bem entendido: avançamos por tacteios e contributos. – E vamo-nos formando. Imperativo, portanto, nunca perder de vista a própria humildade – mas ter, também, sempre, bem presente a própria, incoercível, dignidade e a obrigação de a afirmar – custe o que custar – quando sabemos que sabemos. Porque, não raro, sabemos que sabemos – mesmo que não possamos dizê-lo, praticamente, a ninguém. Obrigação, ainda, já se vê, de identificar o mundo humano que nos envolve – o que exclui a petulância, os que têm a veleidade de poder opinar.

Ortega y Gasset, filho de jornalista, com arrepiante crueza, declarou que “vivemos rodeados de imbecis e de feras”. Seria esse o mundo do jornalismo (e não só) dos tempos do pai do filósofo e do próprio filósofo, ele próprio jornalista, colunista? Recorde-se que escreveu nos principais jornais do seu tempo e que olhou para o jornalismo “como um meio adequado para a criação de um clima intelectual colectivo”. Ou esse é simplesmente o mundo – qualquer que seja o tempo e lugar – quando o vemos de um dado ângulo?

O que me custa, é o que eu sei – melhor: sinto –, é que há autores que se apresentam com putativas credenciais, mas, vai-se a ver, há um topo que lhes falta para poderem ser psicagógicos. Não estou a referir-me aos jornalistas de “rebanho”, depreciativo que li já – nem ignoro que estou desprovido de interlocutor quando o que sei é demasiado profundo. A isto, quando muito, plasmo-o num poema.

Pelos vistos o dia de trabalho de Hegel começava com a leitura da imprensa; e que tal é obrigatório – mesmo quando o quotidiano é uma lufa-lufa – é supérfluo mencioná-lo.

Mas a Imprensa, ai de nós!, ao lado de colaboradores exaltantes e que, às vezes, nos doam textos grandiosos, é, não raro, um estendal de opiniões deletérias e/ou miserandas.

Se estes segundos colaboradores são numerosos na Imprensa, e não só na portuguesa, há ainda os que são claramente mal formados, ademais de presunçosos e publicitados pelo regime. O que constituem de travão para o País é doloroso além de todas as palavras. Na melhor das hipóteses são limites a um porvir mais aberto, amplo, feliz.

Senti-lo foi a razão que me levou a comunicar ao nosso Bispo a falta de um jornal católico – com qualidade. Em Espanha, só um exemplo, um colaborador do ABC é, também, colaborador do L’Osservatore Romano. Quem é o colaborador português?

Penso no jornal católico – insisto: de qualidade – como num nacional, liberal, genuinamente progressivo…

Uma imprensa de superior qualidade que venha para a rua, mas não se auto-intitule de referência, quando salta à “vista desarmada” que dá guarida a muita miséria. Uma imprensa que saiba identificar a qualidade que há em Portugal, mas que, na melhor das hipóteses, de Angra do Heroísmo a Vila Real, de Braga a Portalegre ou Évora, v.g., dê voz a pessoas de grande qualidade, quaisquer que sejam as suas posições.

Estamos desprovidos de interlocutor quando o que sabemos é demasiado profundo. Quando muito, a tal plasma-se num poema. Se, ainda assim, essa pode ser a “impudência” de que falava o luminoso Nietzsche, então que impudência não é a deletéria opinião?!

O leitor está precavido?

Guarda, 31-V-09

Por: J. A. Alves Ambrósio

Do acto de escrita

Sobre o autor

Leave a Reply