Arquivo

Discussão à espera de um fósforo

Tresler

1. As relações entre as pessoas são complicadas: no casal, lugar por excelência da confrontação, entre pessoas de igual estatuto “condenadas” por vontade a viver juntas; no emprego, entre colegas que não escolhemos e cujas qualidades ou falta delas temos de gerir na colaboração; na amizade, em que as relações são mais estáveis enquanto os amigos não se envolvem em compromissos entre si. Mas em todos estes casos evitamos em cada dia discussões fortes, mandando calar o outro, calando diante do outro ou chutando para canto.

Quantas vezes não parámos já a pensar no dia em que vamos “dizer as verdades” àquele fulano que se anda a armar de cada vez que toma a palavra, confundindo a realidade com a ficção que construiu, criticando os outros no seu quotidiano e não vendo que ele próprio tem comportamentos lamentáveis? Ou contra aquele colega de trabalho que consegue a quadratura de ser feliz trabalhando mal e porcamente (ou fingindo melhor que nós) e apreciando-se ainda por cima naquilo que faz? Ou contra o (a) nosso parceiro(a) de casa que se afirma em cada dia na oposição a nós e contra nós? O que ganharíamos em transformar esses espaços em campo de batalha, desvendando no dia a dia os defeitos e o autoconvencimento dos outros? O tempo entretanto faz-nos hesitar, ponderar, deixar andar, tolerar, resistir à vontade de discutir.

2. Não ganharíamos nada. Muitos dirão que o remédio estará em arranjar estratagemas de desabafar (convictamente) para o travesseiro, (simbolicamente) para o vento na solidão do campo ou (estrategicamente) para terceiros já que muitas vezes não é possível reter toda a torrente de juízos e posições que não podemos guardar dentro de nós. E assim acontece que aquilo que não ousamos dizer ao outro frente a frente lhe chega às vezes por terceiros, desvirtuado e às vezes tremendamente adulterado. Às vezes são fins de relações, ódios para o resto da vida. Não vale a pena depois dizer (agora sim obrigatoriamente frente ao outro) que não foi bem isso que se disse ou queria dizer. Não vale a pena afiançar ao outro que aquilo que pensamos dele ou dela somos nós que lho dizemos ou então não existe. Para o outro uma história de traição ou pouca confiança é mais observável por terceiros e os terceiros que “viram” ou “ouviram”, esses sim, são os garantes da “verdade”. Numa altura em que aceitamos tanto que somos diferentes e que temos de tolerar a diferença, a aceitação mais natural é a de que podemos perfeitamente quebrar com alguém.

3. É no casal que as discussões e a irrupção da sinceridade levam a maiores conflitos, dada a falta de saídas sem ser no entendimento. Como num campo de concentração em que, sendo todos iguais mas não podendo sair por “dá cá aquela palha”, podemos acusar, atirar, defender-nos, sem que admitamos que somos menos que os outros. Digo no casal ou melhor numa certa (segunda) fase do casal. Passada a fase do enamoramento e do amor, chega a época da difícil realidade da convivência entre associados da mesma casa-empresa e finalmente a da resignação silenciosa, pontuada por um ou outro conflito mais ruidoso. Ganham aqui os casais em que a complementaridade for maior, em que a solidão do duo se diluir nas amizades comuns ou em que um dos lados tem tolerância para dar e vender. Ou ainda quando o casal é constituído por dois amigos (coisa rara, marido e mulher não são habitualmente sinónimos de amigo, é mais do que isso). Nos locais de trabalho a adaptabilidade é maior, com mudanças de secção, alianças táticas, descolamento dos outros, menor empenho temporariamente. Entre amigos também os perigos são apesar de tudo menores já que as amizades se expandem pelo exterior e são mais facilmente substituíveis: neste caso as zonas de penumbra, de stand-by, têm mais hipótese de manter-se como estão, à espera.

A discussão aberta é no entanto necessária (sem “sangue” e controlando os estragos, difícil ciência) e ai daquele que nunca deu um berro ou nunca “agrediu” ninguém próximo: é sinal que não tem unhas nem para atacar nem para se defender. “Água em pena de pato” é um conjunto de 3 peças de teatro de Mário de Carvalho em que o confronto entre amigos, amantes e familiares é elevado ao máximo da violência verbal: esses momentos que tentamos evitar ou adiar no dia a dia mas que moram cá dentro, à espera de um fósforo para deflagrar. Entre irmãos, entre pais e filhos, entre amantes, entre marido e mulher, entre amigos. Palavras duras e implacáveis – as “verdades” que por cobardia, tática ou cautela não somos capazes em cada dia de atirar ao outro.

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply