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Direito à cidade

Em contraponto às manchetes sonantes, há todo um conjunto de parâmetros que influem mais na qualidade de vida que a construção dos reclamados túneis e novas auto-estradas. A mobilidade ou acessibilidade urbana é, sem dúvida, um dos mais pertinentes. A crise de combustíveis veio, aliás, acentuar a reflexão em torno desta problemática, questionar hábitos e instigar a capacidade de transformar uma situação económica difícil em novas e exigentes oportunidades. As políticas de mobilidade, precioso instrumento para a interacção social, configuram hoje um imperativo ético.

Qualquer cidade carece de arquitectura de qualidade e de infraestruturas funcionais que sirvam os cidadãos. É hoje por demais evidente que aqui, nas pequenas cidades da Beira, os modelos urbanos estão desajustados dos fluxos gerados pelas práticas tecnocráticas de planeamento: há deslocações obrigatórias casa/trabalho, os equipamentos de educação estão distantes das zonas de residência, os serviços públicos fora de portas, as áreas comerciais concentradas, o povoamento disperso e as famílias atomizadas. A estes factores junta-se uma rede de transportes públicos ineficaz.

Até nas áreas urbanas consolidadas, a circulação automóvel se sobrepôs a qualquer outra lógica. Tal se constata no sobredimensionamento das vias, na desproporção entre a área de passeio e da faixa de rodagem, entre o arranjo das rotundas e o descuido das praças, entre as extensas áreas de estacionamento e a exiguidade dos espaços verdes. Quem, apesar disto, tenta deslocar-se a pé na cidade, defronta-se com problemas sempre inesperados: passeios descontínuos (quando há), estreitos e quantas vezes com sinais de trânsito ou outros obstáculos a meio, bermas sem protecção, passadeiras insuficientes, degraus na entrada dos estabelecimentos, lancis desmesurados, falta de passagens desniveladas, diferenças de cota e inclinações acentuadas, rampas de garagem sobrepostas à via pública, loteamentos descontínuos, separadores centrais, etc. Para não falar da falta de civismo de alguns condutores que circulam com velocidade desajustada, negam a prioridade aos peões e fazem questão de estacionar nos passeios.

Para se perceber a verdadeira dimensão deste assunto, pense-se, por exemplo, na aventura que é para um cego, para uma pessoa com um carrinho de bebé, para um idoso ou alguém em cadeira de rodas, cabendo no elevador e vencendo os degraus do prédio, ir de casa a um qualquer estabelecimento, repartição ou jardim. Talvez por isso, nem as crianças se deslocam a pé para a escola. O que noutros países é vulgar.

A generalidade destes problemas configuram hoje ilegalidades à luz da lei das acessibilidades e não precisam de grandes investimentos para serem colmatados. Precisavam apenas de cuidado no desenho do espaço público, de efectivo planeamento de pormenor e de rigor na fiscalização municipal. Os problemas concretos que as pessoas enfrentam na vivência quotidiana do espaço público têm soluções tipificadas que, com boa vontade, poderiam ser adaptadas. Nada impede e pouco custa este urbanismo à escala humana, a não ser ofuscar a megalomania sonhadora com obras de regime e o gosto local pelas procissões de automóvel.

Com cidadãos apáticos e sem um modelo de planeamento territorial participativo, a rua dificilmente será uma construção colectiva. Percorrer e viver a cidade é o primeiro direito cívico. Eliminar as barreiras físicas será um passo na eliminação das barreiras psicológicas. A melhoria das condições de vida e de autonomia dos cidadãos contribui para o desenvolvimento dos valores humanos e para a defesa dos princípios democráticos. Com o seu desempenho ao nível motor, sensorial e mental, a arquitectura pode coadjuvar no alcance desse desiderato.

Por: Francisco Paiva

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