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Dinu Lipatti

Opinião – Ovo de Colombo

Um pianista às portas do outro mundo: os seus dedos zombam ainda hoje de tais portas — Dinu Lipatti (1917-1950), pianista, compositor e maestro romeno, no seu último recital (Besançon, 16-09-1950), falecido três meses depois vítima de leucemia. Eis o programa do cd: 1ª Partita de Bach, Sonata nº 8 KV 310 de Mozart, Improvisos D 899 nºs 3 e 2 de Schubert, 13 Valsas de Chopin. Segue-se um diário de bordo nesta viagem que Lipatti empreende na demanda de imortalidade, à falta de melhor Eurídice.

Parte do frontispício do op. 1 de Bach, precisamente a 1ª Partita, informa: «composta para a recriação do espírito dos amadores». Camões está sempre por perto, nestas ocasiões, «Transforma-se o amador na cousa amada», e nunca mais ninguém ousou no piano a 1ª Partita de Bach sem pedir licença a Lipatti. E a vetusta questão cravo vs piano fica arrumada sem contemplações. Se, neste repertório, o início do século XX é marcado pela figura pioneira de Wanda Landowska, conduzindo a uma crescente apropriação da música barroca pelos instrumentos da época, estamos contudo ainda longe da consagração de Gustav Leonhardt. Lipatti revela-se um modelo de sobriedade em 1950: contenção nas dinâmicas, afastando-se de uma tradição romântica que nos faz remontar a Busoni e que persistia, por exemplo, em Edwin Fischer. A interpretação de Lipatti faz-se de nuances que privilegiam o percurso tonal, o devir Bach flui sem artificialismo, e o pianista caracteriza cada andamento da Partita num affectus pianístico específico, pela escolha do toucher, contribuindo para a unidade de cada peça, num cantabile de levarmos para a nossa ilha deserta. Desde o início da Partita, a ornamentação do Praeludium revela uma energia metafísica. Apetece dizer com Ruy Belo, antes da fascinante obsessão polifónica de Gould ou do espírito de missão de Tureck:

«Era a seguir à morte meu poeta,

era na meninice havia festa e na sala da entrada

pensávamos na morte — nunca mais — pela primeira vez».

Do culto de uma polifonia sem o acinte asséptico que mais tarde caricaturas à la Gould ostentariam, da natureza de dois minuetos pianisticamente nos antípodas um do outro, ou da exuberância de uma Gigue, tudo em eloquente homenagem a Bach no ano bicentenário da sua morte — «contentar-me-ei dizendo» o menos.

Por assumida falta de carácter (ou será caracteres?), deixemos a viagem in medias res, que é a melhor forma de ouvir os clássicos.

(To be continued.)

Por: Eduardo de Mora*

*Pseudónimo

Dinu Lipatti

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