Arquivo

Diagnóstico do Nosso Tempo

Razão e Região

O ano de 2008 é bem exemplo da velocidade com que a história se está a processar: crise grave no sistema financeiro internacional; Barack Hussein Obama chega a Presidente dos EUA e inaugura, com dinâmica vasta e inovadora, aquilo a que alguns já chamam «política pós-racial»; o petróleo sobe e desce a um ritmo estonteante, provocando forte instabilidade social; a economia mundial mais parece um jogo de casino do que um consistente processo estrutural; o fim da ilusão neoliberal e o regresso em força do Estado, único modo de evitar uma desastrosa corrida aos bancos e o colapso dos sistemas financeiros. São ingredientes que exigem uma reflexão profunda sobre o nosso destino colectivo. Reflexão sobre todas as variáveis de um sistema institucional que desde há mais de duzentos anos determina, com sucesso, o funcionamento das sociedades ocidentais. Mas, hoje, os seus pilares estruturais – como a «representação política» ou a «classe média» – conhecem transformações tão profundas que estão já a gerar uma autêntica mutação genética do sistema. O poder judicial dá mostras de grande fragilidade, pela incapacidade de responder a uma progressiva jurisdicionalização da vida social; o pilar territorial dos Estados nacionais vem-se diluindo cada vez mais vista a progressiva globalização dos processos e das relações. Agora é também o pilar financeiro que ameaça ruir. Para grandes males, grandes remédios, dir-se-ia. Mas bem sabemos no que deu a engenharia social e o voluntarismo, de esquerda ou de direita. A verdade é que todo o sistema está, há muito, em mutação profunda. E não só no plano económico-financeiro, que agora monopoliza a agenda política. A classe média de hoje já não corresponde à velha classe média, com profissão e propriedade estáveis, sedentária, respeitável e bem inserida no sistema. Hoje, a classe média é profissionalmente instável e existencialmente nómada, define-se mais pelo estilo de vida do que pela propriedade, é culturalmente fragmentária. É verdade também que a sociedade moderna conheceu uma crescente complexificação normativa, acompanhada pelo crescimento exponencial da procura de bens jurídicos. O que se compreende quer pela expansão dos padrões urbanos de vida quer pelo aumento dos níveis de literacia social e jurídica dos cidadãos. Por sua vez, a velha «representação política» – que nasceu com a expansão das sociedades ocidentais, com o Estado e o Direito modernos, com a divisão do trabalho, com a afirmação do individualismo e com a configuração abstracta das relações sociais – diluiu-se e deu lugar a uma autêntica «confusão de géneros», a um verdadeiro «sincretismo» político, jurídico, cénico e mediático da representação. O que determinou profundas mutações no conceito e no funcionamento da democracia representativa. A globalização dos processos e das relações acabou com a ideia de «fronteira territorial», aumentando as migrações humanas e de processos materiais e imateriais. Finalmente, o pilar financeiro das sociedades ocidentais, que se fundava numa espécie de confiança institucional, canalizando com aparente segurança a riqueza mobiliária das sociedades e dos concretos indivíduos, entrou numa perigosíssima espiral que pode levar à ruptura dos sistemas ocidentais. É por isso que não compreendo aqueles que criticam a defesa da estabilidade financeira pelos Estados, obrigados que estão, estes, a preservar um sistema que tem provado ao longo da história. Mas também é verdade que a preservação do sistema não se pode confinar à estabilidade e à reforma do subsistema económico-financeiro. Ele deve também ser reconfigurado de acordo com as mutações em curso nos outros pilares estruturais. É claro que esta intervenção integrada só pode resultar de um diagnóstico assumido por forças políticas de inspiração reformista e com consistente implantação popular. Porque uma mudança desta dimensão não se faz com sermões ou ladainhas, com voluntarismo vanguardista e radical ou com velhas utopias desgarradas do tempo. Faz-se com actos, com decisão, com compromisso e, sobretudo, com uma consistente analítica do estado do nosso tempo e suas tendências de futuro. É por isso que só uma força reformista implantada no terreno, com ideias consistentes e com valores de projecto o pode fazer. Se o não fizer, então talvez os predicadores façam tantos estragos que, mais do que progresso, acabaremos por ter regresso. Para onde, ninguém sabe. Mas a História ensina.

Por: João de Almeida Santos

Sobre o autor

Leave a Reply