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“Dia da Raça” nunca mais!

Com a notícia de que o 10 de Junho, que ainda é de Portugal, de Camões e das Comunidades, vai ser na Guarda 37 anos depois dou como prenda uma parte do notável discurso que então leu Jorge de Sena (não tem nada a ver com o rio que banha Paris) para que as individualidades ouçam alguma coisa de jeito antes de debitar as banalidades que cada vez mais me fazem lembrar o “dia da Raça” dos tempos do Terreiro do Paço de má memória.

«Os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, é não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. (…) E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. (…) Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa (…). Além e acima de tudo e todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro. (…) Ele é o homem em si, aquele ser que se busca continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói supremo que realiza, isto é, torna real para a eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo (…). E vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e escrita ou recordada em todos os continentes. O orgulho de ser-se alguma coisa, o inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e não como uma instituição , e a dúvida do presdestinado que se sente todavia só e abandonado a si mesmo. Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu».

Passados anos houve alguém que então estivera nessa sessão mas que a prática demonstrou que estavam desatentos, ou não perceberam nada que o insigne Jorge de Sena disse num discurso imorredoiro e que valorizou a cidade.

Por: Fernando Pereira

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