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Deus não dorme!

NUNCA conheci pessoalmente António Champalimaud. Nunca o vi e nunca falei com ele. Por isso me sinto à vontade para neste artigo reflectir, sem risco de parcialidade, sobre o exemplo da vida de um homem que foi um ícone do Portugal do século XX.

Para a História, o que fica deste homem singular, perante quem ninguém ficava indiferente, é a realidade de uma vida, mas é também a realidade que ele soube projectar para além da morte, como que fazendo sua, numa obstinada luta de gigante contra a adversidade, a conhecida divisa de Pessoa: «Altivamente donos de nós mesmos, usemos a existência…»

Foi isso que fez António Champalimaud: usou a existência, deu-lhe um sentido, e projectou-a para lá da morte, partindo, mas ficando.

Fez tudo contra a força dos elementos, antes e depois do 25 de Abril. A sua personalidade frontal e difícil levou a que o próprio regime anterior, onde pontificavam insignes juristas, chegasse ao ponto de violar as regras mais elementares do direito, produzindo um decreto-lei com eficácia retroactiva para o impedir de ter um banco. Contudo, a sua persistência e determinação levá-lo-iam a criar um império – o que lhe não fez esquecer a consciência social, dizendo com orgulho, já próximo do fim, que nunca tinha despedido um trabalhador.

Após a revolução, foi despojado de todas as suas empresas, mas não foi despojado da determinação nem do talento para criar riqueza, e reconstituiu de raiz, no Brasil, tudo quanto perdera no seu país.

Regressa a Portugal já com idade avançada e, recomeçando tudo de novo, chega ao último dos seus dias como «o homem mais rico de Portugal», para usar uma expressão consagrada.

Mas o que é mais admirável neste homem é a imagem que ele projecta para lá da morte, de uma forma extraordinária, da forma que afinal era a sua marca.

Em primeiro lugar, deixando como legado uma parte muito substancial da sua imensa fortuna para criar uma fundação, com o nome dos pais, ao serviço de um Estado e de um país que tantas vezes o tratou mal. Aquele que uma certa propaganda pós-revolucionária diabolizou como o símbolo do capitalismo e da avidez deixa cerca de um terço da sua fortuna para servir os outros e o bem comum. Consciência social!

Em segundo lugar, indicando que o escopo dessa fundação deve centrar-se na investigação científica na área médica, que é uma das mais graves lacunas do país, demonstrando que a idade avançada em nada diminuiu nele o sentido de futuro, que foi a matriz da sua vida. Visão estratégica!

Em terceiro lugar, escolhendo expressamente, como instituidora da fundação, uma pessoa que praticamente não conhecia e com quem terá estado apenas uma vez na vida: Leonor Beleza. O eterno provocador, que gostava de ir contra o politicamente correcto, faz com que o acto da leitura do seu testamento fique marcado com esse significado: um acto que também é político!

Há algumas semelhanças entre Champalimaud e Leonor. A mesma determinação, a mesma tenacidade e, sobretudo, essa teimosa persistência com que lutaram contra o vento, com que não abdicaram de permanecer de pé, após os golpes da adversidade, da inveja e da calúnia.

A sobrevivência de Leonor Beleza, depois de tudo quanto foi feito contra ela, tem os contornos das tragédias gregas. Por tentar há quinze anos promover reformas na saúde – então consideradas uma heresia, mas hoje objecto da mais mansa aceitação -, foi alvo de uma das tentativas mais vis de aniquilamento de carácter a que já se assistiu na política portuguesa. E até o partido que a idolatrava com entusiasmo, quando via nela uma possível titular da liderança, envergou o traje da prudência e do recato, e assiste ainda hoje sem náusea e sem revolta à controvérsia judicial em torno do seu caso, que é um dos mais vergonhosos fracassos da Justiça portuguesa. Partido que tem sido avaro em tratá-la com justiça, conferindo-lhe uma posição modesta numa galeria de sombras.

Que alguém como António Champalimaud a tenha escolhido para esta tarefa não deixa de ser, talvez, a última ironia de um homem raro e desassombrado, que nunca se eximiu a dizer frontalmente ao país político, com razão ou sem ela, o que lhe ia na alma. Como que querendo fazer, com tão inesperado gesto, a justiça que outros poderiam, e deveriam, ter feito.

Deus não dorme!

Por: Duarte Lima

Rede Expresso

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