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Desertificações

Theatrum Mundi

A desertificação que afecta o interior do país é um processo de transformação extremamente complexo e multidimensional que põe à prova, neste início do século xxi, as virtualidades e as insuficiências da resposta liberal para a função e razão de ser do estado enquanto comunidade politicamente organizada. Há razões de sobra para concluir que nos últimos anos se tem vindo a consolidar um certo discurso político que assume veladamente que a desertificação é o resultado lamentável, mas inevitável, da marcha humana para o progresso e o sinal consequente da modernização política em que o estado está obrigado a deixar para trás tudo o que não é economicamente eficaz ou não aguenta as exigências do livre jogo do mercado. Só assim se justifica a manifesta falta de vontade política para encarar as diferentes implicações da desertificação, ambientais e sociais, por exemplo, e delinear uma estratégia global para lhe fazer face. Os incêndios dos últimos verões instigaram alguma consciência e uma que outra mea culpa mas, no essencial, a displicência de sempre volta a instalar-se e é ocultada pelos discursos economicistas da retoma, do défice e da putativa eficiência do estado. Eis senão que a ‘falta de margem de manobra’ (para o investimento público e a promoção da coesão territorial) assume a qualidade de jargão inquestionável na crescente burocratização da acção governamental. O descalabro do programa polis parece querer então demonstrar que as prioridades da coligação estão muito longe, até porque o país tem de orientar-se por objectivos mais ambiciosos, como a organização dos jogos olímpicos ou o pregar aos peixes que a soberania de Portugal é um facto inquestionável.

Em maior ou menor grau, as forças políticas com responsabilidades na governação depois de 1974 têm mostrado uma notária incapacidade de ultrapassar esta visão da comunidade como mero conjunto de consumidores e de compreender que a produção de justiça e coesão territorial é a sua primeira obrigação. E já agora convém não esquecer que a desertificação social e ambiental também é um produto da qualidade da democracia que temos, que vai retirando representatividade aos círculos que perdem eleitores como se tudo se resumisse a um mercado político, que estigmatiza a articulação de interesses regionais no parlamento nacional e reduz os círculos regionais ao plano instrumental da funcionalidade política. O país não foi poupado pela competição do mercado global que estrutura as relações entre grupos humanos em novos termos e causa desconfiança e perplexidade generalizadas: lembre-se a polémica relativa às inúmeras deslocalizações de multinacionais e ao debate acerca da intervenção que o estado deve assumir nestas situações. E contudo, no plano interno, a articulação regional parece estar votada ao mesmo tipo de lógica política que faz da desregulação liberal o seu princípio ideológico orientador. Neste contexto, as iniciativas descentralizadoras dos dois últimos governos parecem, mais do que nunca, condenadas ao fracasso e a demonstrar o thermidoriano princípio de que alguma coisa tem de mudar para que tudo fique na mesma. É mais do que irónico, é dramático que a chamada descentralização a partir das bases esteja a promover precisamente o tipo de competição e de mal estar entre vizinhos que os opositores da regionalização tanto se empenharam em denunciar aquando do referendo de 1998.

Por: Marcos Farias Ferreira

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