Arquivo

Desejo negro

Nem a Corin Tellado no auge do seu fulgor ocorreria criar uma história passional cujo Romeu cantasse num grupo chamado Negro Desejo e que, numa noite de loucura, espancasse a sua Julieta, uma actriz brutalmente romântica (pela qual abandonara a mãe dos seus dois filhos, logo depois do nascimento do segundo), até a matar. Nessa história irreal, o amante irascível, depois de condenado por homicídio “involuntário” tornar-se-ia prisioneiro modelo e seria libertado ao fim de três anos, reatando relações com a Julieta anterior à assassinada que, num outro assomo passional, se enforcaria – deixando ao triste e amargurado cantor as duas crianças. Se, num dia de desesperada desimaginação ou grande necessidade, semelhante enredo acudisse a uma Corina dos Telhados, a autora não ousaria terminar o folhetim sublinhando a infelicidade do grandioso cantor e dos seus negros desejos – seria demasiado inverosímil, desgostosamente kitsch.

Todavia, esta história, assim contada, pôs a delirar a imprensa francesa, do intelectual “Libération” às revistas do coração. O “Libération” comove-se: “O suicídio desta última (a primeira mulher) veio acrescentar um novo episódio trágico à vida do cantor de Bordéus, frequentemente comparado, pelo seu carisma e pelas suas prestações cénicas, a Jim Morrison, o lendário cantor dos Doors.” Pobre Jim, às voltas no túmulo: não lhe faltava mais nada do que emprestar o carisma a um tratante que já levou à morte duas mulheres – uma a soco e a pontapé, outra sabe-se lá como: apenas sabemos que ele estava em casa com ela quando ela se suicidou.

Efeitos imprevistos do carisma – e, certamente, do mais negro, obscuro e apaixonado desejo. Nas publicações especializadas em intimidades públicas, o romance é ainda mais cintilante, e Bertrand Cantat – assim se chama este herói romanescamente maldito – uma vítima do talento e da desgraça. A caixa de comentários online do “Libération” encheu-se de Berthas e Nadines suspirantes de amor e compreensão para com o visceral Bertrand. Alegam elas que o cavalheiro já pagou pelo seu “involuntário” crime – pois matar uma mulher a murro é um azar do destino, sem dúvida – e que agora, depois desta segunda “tragédia” (o enforcamento da mãe dos filhos) precisa é de serenidade para conseguir criar (e educar santamente, decerto) os dois inocentes infantes. Um homem sozinho com os filhos é ainda um afrodisíaco intenso, exactamente ao contrário do que acontece a uma mulher – é a vida, como dizem os que acham que a vida está bem como está, tão bem que parece que não só é como deve ser assim. E da vida tal como está ou é faz parte esta tragédia concreta de tantos seres aparentemente racionais se derreterem de encanto perante qualquer ser especializado em cantorias e brutalidades – é a atracção pela “marginalidade”, seja lá isso o que for, na nossa sociedade global. Acresce que Cantat se proclamava pacifista – e um violento propagador da paz é irresistível.

Só mentes trituradas pela globalização massificadora e por conseguinte imunes à poesia das margens (como a minha, por exemplo) poderão estranhar que o mesmo jornal (o “Libération”) que tanto louva um homem que matou a sua própria mulher à pancada (levado pelo demónio verde do ciúme, claro – o que justifica tudo) faça uma campanha estrénua contra a condenação à morte da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, presa desde há cinco anos, chicoteada em frente de um filho por acusação de adultério (póstumo, depois da morte do marido; uma modalidade de adultério pelo menos tão original quanto a ideia de paixão de Bertrand Cantat).

Parece-me de uma urgência extrema que se impeça mais esse crime, apenas um de muitos e quotidianos atentados aos mais elementares direitos das mulheres, do inaceitável governo do Irão. Mas preciso que me expliquem porque razão um francês que mata a mulher à pancada é uma vítima da paixão e do destino para as mesmas cabeças que se revoltam contra o homicídio de uma mulher no Irão. Preciso de entender porque é que ninguém escreve abaixo-assinados a pedir que afastem este Cantat carismático das mulheres que ainda pode matar. Preciso de perceber porque é que a morte de Sakineh Ashtiani importa e a morte de Marie Trintignant não importou. Sei que enquanto nos desvanecermos com este género de “marginais” violentos com uns fumos de arte e revolução, alimentaremos os seus clubes de fãs – e as suas vítimas. Bertrand Cantat é um pedaço do Irão que mata em França. A mesma lógica de poder absoluto, o mesmo desprezo pelas mulheres.

Por: Inês Pedrosa

Sobre o autor

Leave a Reply