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Depois da praia

Já faz mais de uma década desde que Philip Gröning trouxe aos cinemas de todo o mundo a experiência do que é o modo de vida dos monges da Grande Cartuxa, quotidiano feito de silêncio, recato, rostos quase sempre cobertos. Para muitos espectadores religiosos, a experiência de religiosidade transmitida por este documentário foi extraordinária. Mesmo para não religiosos, a experiência de espiritualidade era profunda. Sem interferir em nada do que filmava, sem introduzir-lhe narrativa ou sentidos além do sentido que aqueles hábitos fizessem, “O grande silêncio” mostrava e respeitava – e decerto mostrava porque respeitava – a diferença nos modos de viver de alguns e o sentido dessa diferença. Por exemplo, homens decidirem não falar e permanecer em silêncio grande parte da sua vida. Não o faríamos. Não poderíamos, aliás, todos fazê-lo. Mas tentamos compreender porque alguns o fazem. E aceitamos e respeitamos que o façam.

Hoje vivemos dias confusos a este respeito. Não se concebe que abstenção ou renúncia possam ser voluntárias, conscientemente escolhidas, com um sentido amadurecido, mesmo que pouco sentido faça para os outros. Não se concebe ou não se quer admitir que escolhas assim possam não ser resultado de opressão. Sobretudo, se quem escolhe não é um homem, mas uma mulher; sobretudo se quem escolhe o faz por razões religiosas ou espirituais. Por que não uma mulher preferir cobrir-se a despir-se quando vai à praia? Por razões de recato religioso. Ou por razões de conservadorismo cultural – não nos confundamos, ser conservador é um direito tão legítimo como ser liberal, num quadro de igual respeito. Mas podemos ir mais longe e virar o jogo, e falar também de razões de emancipação da mulher que não se quer mais sujeitada à condição de objeto sexual.

Quando me falam com tom consternado do desconforto físico das senhoras que, indo às praias da Riviera, vestem burkinis, tento imaginar o dito desconforto e o que me ocorre são antes senhoras de saltos altos impecavelmente brilhantes em perna depilada impecavelmente brilhante. Lembram-me os joanetes, problemas de coluna, calos de arrepiar, unhas encravadas, horrores atrás de horrores. Mas falávamos de burkinis que fazem calores. Pois. E como há desconforto físico, há também desconforto psicológico. Os bikinis que não cobrem mais do que as zonas estritamente erógenas e não porque o objetivo seja cobri-las, mas assinalá-las bem, não desconfortam a mulher assim objetivada, não desconfortam a esmagadora maioria das mulheres que só deseja tirar gozo da praia sem que sinta necessidade de, para isso, dar gozo ao idiota do lado? Mil vezes o topless do tempo das nossas mães, cujo significado era poder aparecer a nudez desligada de teor erótico. Mas, curiosamente o topless é uma figura em extinção nas praias. Talvez pelas mesmas razões por que o burkini irrita tanto os irritadinhos da praça. Quanto ao desconforto, já que infelizmente as mulheres continuam condenadas a algum, que pelo menos possam escolher o que não querem.

Por: André Barata

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