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De volta aos Gagos

Tresler

«A morte é a forma mais silenciosa de comemorar uma vida inteira»

(Joaquim Pessoa)

1. À esquina, quando se volta para a igreja, encontrei o ti João Saraiva, o dos tonéis de vinho batizados com o nome dos reis de Portugal. Era quase Páscoa e o ti João acabara de colocar a torneira no D. Miguel e convidava-me para uma prova. Que estava de arromba! Lá fomos à adega, que não se pode negar um convite destes. O vinho estava mesmo de truz e um coscorel ajudou a escorregar o segundo copo. Até íamos cantar melhor o “Queremos Deus” na igreja. Mas à saída dei de caras com a ti Conceição, mulher do ti Zé Lopes, a mulher mais engraçada dos Gagos, que me queria contar uma cena que tinha tido na feira de Pinhel. Lá me arredei do caminho da missa, que ainda faltava um quarto de hora. A ti Conceição veio-me com uma história de uma “seresma” que lhe tinha aparecido na feira e que lhe tinha pedido para levar uma teia a mostrar à sua senhora rica que estava em casa e não podia ir à feira por motivos de saúde. Ela logo viu que aquele “zambalho” a queria enganar. No caminho ainda a “lambisgoia” tentou pedir-lhe 5 escudos para comprar feijões, que já lhos pagava em casa mas viu logo que a fartura daquela senhora rica era pouca. Chegadas à casa, a “pantoja” disse-lhe que esperasse para mostrar a teia à senhora, que já vinha. A ti Conceição foi-a seguindo à socapa, desconfiada, e descobriu então que ela pretendia escapar pelo quintal do outro lado da entrada. Sacou-lhe então a teia, não sem antes a ter chamado de galdéria para cima a ela e à respetiva mãe. A conversa ia longa e a missa a aproximar-se mas quem calava a ti Conceição? Então vejo lá vir ao fundo, do lado da feira das vacas, o ti Aragão. Pronto, já sabia que ia ter história. O ti Aragão era o maior adversário dos espanhóis e aceitava ser padrinho de quem o convidava para isso desde que o miúdo a batizar não se chamasse Filipe nem Henrique. Filipe, do rei ocupante em 1580 e Henrique, do cardeal que tinha entregue a pátria aos castelhanos. Já sabia que ia vir com a história da burra espanhola que uns ciganos do lado de lá lhe tinham impingido na feira de Almeida e que pouco valera. Mas não. Hoje não trazia histórias e lá seguimos para a missa. Dentro da igreja, não dei conta do ti Abel Saraiva, cujo lugar estava vazio. Coisa curiosa porque, banco a banco, ali via todas as personagens dos Gagos que ele tinha tornado célebres nas crónicas do jornal e que ali pareciam estar a prestar-lhe homenagem. Desde o ti Aragão ao ti Amaral, ao Rasga-a-Manta, ao Santinho da Amoreira, ao ti António Botelha, ao ti João Saraiva e tantos outros, todos ali estavam alinhados e compenetrados, como em último preito. Mas ele parecia estar a demorar. Saí e à porta disseram-me que o ti Abel já não viria.

2. Sim, Abel Saraiva, o autor das saudosas crónicas “Recordações da minha aldeia”, mais tarde reunidas em volume, faleceu há pouco mais de um mês e foi enterrado nos Gagos, ao pé daquela gente toda que, dizia um dos seus heróis, «estaria toda no céu porque, se aquela gente não foi para lá, Deus bem poderia encher o céu de fardos de palha». Ele lá está a olhar-nos de cima, a ver-nos a percorrer os carreiros entre giestas e barrocais, como ele gostava, a olhar para todo este abandono sem remédio. A feira dos Gagos acabou, a agricultura está nas últimas, a gente é pouca, a terra não se renova, a freguesia promete mesmo acabar na próxima reforma administrativa. A Abel Saraiva, aqui deixo, com estima pessoal, a mais sincera homenagem pela prosa escorreita e castiça e pela humanidade que conseguiu retratar na aldeia que amou e nas personagens que criou e que não raramente me comoviam quase à beira da lágrima, por serem da mesma genuinidade que os meus próximos, três quilómetros ao lado, na Castanheira. Assim criou, para todos nós que o líamos com ansiedade a cada semana, uma galeria incomparável. Era um homem digno de admiração. Tenho passado uns bons momentos a reler os seus textos neste Natal.

3. A oportunidade desta homenagem traz também à liça a imprescindível recolha que não podemos parar de fazer, em livro ou em periódicos, da realidade das pequenas comunidades na nossa região. Abel Saraiva vinha dos Carvalhos aos Gagos, ouvia, gravava, sistematizava. Que pena ver hoje certas realidades pouco estudadas por falta de tempo ou de pessoas abalizadas na investigação que a elas se dediquem! Que pena ver a fraca apetência de certos técnicos superiores pela preservação do património imaterial! Com os ventos atuais muitas realidades já foram varridas da memória, outras estão quase. Sinal dos tempos, as festas ameaçam ficar sem mordomos (em geral gente nova, que escasseia) ou espaçar-se para festas bienais. A história já vem de antes mas parece haver um buraco negro a sorver todo este mundo e a sorver a respetiva memória.

E que dicionário magnífico criou Abel Saraiva com as palavras genuínas e “regionalíssimas” que ele empregava a preceito! Norberto Gonçalves já fez a coleta na Praça Velha. Porque não divulgá-las agora em volume separado? Seria uma boa homenagem!

(Paciência, capacidade de sofrimento, esperança, é o que nos pedem os mais moderados a cada dia que se acumula na crise. Mas sublimar a revolta neste ano exige também querer, chorar, pedir mais justiça. Dar a volta por dentro e ser melhores do que pensamos que somos é o terceiro lado do triângulo para 2012! Que seja bom!).

Por: Joaquim Igreja

Comentários dos nossos leitores
Argílio Dinis Varandas dvarandas@clix.pt
Comentário:
Com grande tristeza, através deste artigo, tive conhecimento do falecimento do sr. Abel que eu conhecia muito bem, pois sou tambem natural dos Gagos residindo em Lisboa. Argílio Dinis Varandas
 
Maria Rosa Igreja de Abreu mariarosaabreu@hotmail.com
Comentário:
Com grande tristeza vemos todas as personagens das nossas aldeias partirem. Quando vou à Castanheira vejo-as todas juntas no mesmo sítio onde vou ver os meus pais, que tambem já partiram. É com saudade que lembro os tempos pobres, mas alegres, da minha garotice. Fui muitas vezes à feira dos Gagos com a minha mãe, pelo caminho velho que me metia medo, mas com a vontade de ir à feira, até isso me passava.
 

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