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De milhão em milhão até à centena final

Extremo Acidental

As manifestações populares de sábado passado tiveram um sucesso semelhante a um festival de Verão. Com menos gente que o Rock in Rio, é certo, mas com o mesmo grau de brejeirice do Festival do Sudoeste. Se os directos não mostraram apresentadoras aos beijos, viram-se jornalistas a ter orgasmos com a imaginação numérica dos organizadores.

Não julgue o leitor que tenho alguma coisa contra exercícios de criatividade científica. Eu aprecio a Geografia inventiva de Italo Calvino ou a História redesenhada de Goscinny e sei que a Literatura exige a suspensão da descrença. Da mesma forma que Quixote julgava serem gigantes o que eram moinhos, não sejamos nós os Sanchos que reduzamos o Terreiro do Paço a um terreiro do Passos. Se querem um milhão de pessoas na rua, acrescentemos outro milhão, que a raiz do pensamento não pode ser cortada com machados nem serras eléctricas nem lâminas de barbear.

Também o discurso dos cartazes se aproximou do nível de brejeirice dos festivaleiros estivais. Embora não me desagrade o uso de calão, talvez o prefira em contextos específicos – por exemplo, em sonetos oitocentistas ou em obras cinematográficas de produção caseira. Em termos de javardice, hesito entre o erudito e o artesanal.

Uma das manifestantes afirmava num cartaz que “se quisesse trabalhar para chulos, tinha ido para puta”. Como esta mesma frase já tinha sido exibida na manifestação de 15 de Setembro, era importante saber se foi a mesma pessoa, reforçando o seu desagrado pela dificuldade de acesso livre à profissão, ou se foi outra mulher com o mesmo ressentimento. Se forem duas pessoas diferentes, talvez queira dizer que grassa um descontentamento generalizado da população, que só não pratica a prostituição porque não gosta de ser controlada. O povo da rua grita por Marx na política, mas exige Hayek na cama. Friedrich Hayek, claro. Se fosse Salma Hayek até Trotsky gostava.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

* O autor escreve de acordo com a ortografia antiga

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