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De como de tudo se pode fazer poesia

“Das sombras irreais da noite irrompe a vida real que sempre conhecemos. Temos de reatar onde a abandonámos.”

Oscar Wilde em “ O retrato de Dorian Gray”

Chove.

Chove forte, fortemente, como quem chora por si.*

Lá fora, a água lava a cidade.

Os cães vadios não vão ter hoje tão cedo a sua habitual refeição nocturna.

Os promissores sacos de lixo que escaparam à última recolha vão ter de esperar até que a chuva pare.

Nessa altura os seus mistérios serão finalmente desvendados por dentes e garras experientes que recolherão o aproveitável e dispersarão os artefactos de lata e vidro que mesmo um estômago canino esfomeado não consegue digerir.

Atenção, a chuva amainou! Talvez o suficiente para que os mais atiradiços avancem para o festim, mesmo debaixo de alguma água.

Aliás, basta arrastar um pouco o saco, para um vão mais protegido, um troço de escada, uma entrada, um saguão desguarnecido e… começar a comer.

A seguir virão os gatos.

Depois os ratos.

Um dia, chegarão os sem-abrigo.

Ainda não chegámos a esse ponto de desenvolvimento urbano.

Chove… e a água empoça os passeios esventrados. O vento arrasta os plásticos até aos lancis mais altos. O barulho da abundância, repetitivo e embalador, exerce o seu efeito soporífero sobre os cidadãos.

A cidade dorme. Cães, gatos, ratos e humanos, todos tiveram a sua refeição. Amanhã será um novo dia.

Vou dormir.

No centro histórico abrirão, primeiro as tascas, depois os cafés, a seguir as lojas e as igrejas, mais tarde os restaurantes e, por fim, os bares.

As pessoas, os animais, as pedras irregulares e escorregadias da calçada, as casas abandonadas, as conversas e os detritos colocados ao Deus dará convivem com as fachadas amarelas e os frequentadores da noite numa simbiose de cheiros fétidos e figuras perfumadas, moda e anacronismos, dignos de um romance de Anne Rice.

Provavelmente até há lá fantasmas.

E os detentores de poderes mediúnicos ou de muita imaginação poderão ouvir, se estiverem atentos, bem de manhãzinha, o antigo “água vai”, vindo do fundo dos tempos e sentir os seus eflúvios desvanecendo-se pela calçada.

* Atenção à anadiplose, que é uma forma de epanalepse. E esta, hein? Quando não tiverem nada que fazer, leiam o prontuário. É muito divertido e embalador.

Por: Maria Massena

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