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Da Universidade – esparsa e muito sumariamente

Enquanto missão e identidade, que não estrutura, digamos, a Universidade foi para mim um longo assédio. Mutatis mutandis como Husserl falava da Filosofia como “ciência de rigor”, entendia eu que a Universidade se podia elevar à condição de intangível fanal a derramar luz sobre o Presente e o Porvir. Das minhas mais queridas pessoas no tempo de Universidade, uma da área da Filologia e da Linguística, oriunda de uma das mais conspícuas e ancestrais famílias da aristocracia portuguesa e hoje uma figura importante em Portugal; outra, da Filosofia, conimbricense, oriunda de famílias conectadas ao espiritismo, espantosamente superior na sua espiritualidade; uma terceira, de prestigiada família micaelense, matemática, impregnada de um soberbo catolicismo, poço de grandeza interior, braquicéfala em quem o sorriso e o entusiasmo nunca desfaleciam; de nenhuma, jamais, senti o entusiasmo que eu sentia.

A pessoa de Filosofia – ainda por cima conimbricense há gerações – considerava a “sua” (“nossa”) Universidade um lugarzito secundário – e nem o curso concluiu. Nunca o concluiu. O meu idealismo era, portanto, um erro crasso. Mais. Ortega y Gasset na Missão da Universidade é taxativo: “Princípio de educação: a escola, como instituição normal de um país, depende muito mais da atmosfera pública em que paira do que da atmosfera pedagógica artificialmente produzida dentro dos seus muros. Só quando há equação entre a pressão de um e outro ar, a escola é boa”.

Ou seja: antes e frente à Universidade estão a Sociedade, a História e a Vida. E desta (quase) poderá dizer-se que “tem mais força que todos os princípios” (Ph. Ariès). Claro que, desde logo, a Universidade dá o diploma para o “ganha-pão” – no meu tempo… Do 25 de Abril para cá nenhum político teve altura, primeiro para interpretar a História e a Sociedade lusas, segundo para dinamizar esta e criar emprego. “Vou criar milhares de empregos”, disse durante a propaganda. Sucede é que as multi-nacionais debandam…

É evidente que se o estimado leitor, nas suas dignidade e lucidez, se considera suficientemente interpelado deve correr a comprar a obra do filósofo espanhol – e outro tanto para o pai que tem filhos no Liceu a caminho da Universidade.

A Universidade nem é o fundamento do Saber, nem o cerne do Saber, nem o topo do Saber. A Universidade é – tão-só – um degrau na vida como, mutatis mutandis, o Liceu. Mas o leitor não interprete este texto como depreciativo: o trabalho que nela se faz é, em muitíssimos casos, emocionante.

A Descartes, esse homem-charneira, desde a sua meninice, sucedeu instruir-se no estudo das letras, as quais lhe permitiriam, asseguravam-lhe, uma clara noção de tudo o que é útil para a vida. Sucede é que tal profecia não se cumpre. Com efeito, os erros e as dúvidas que o assediam são tais que o que cresce é a sua ignorância – e, todavia, Descartes não só frequentara os mais reputados estabelecimentos como lia o que de mais excelente havia. Viajar foi a solução que encontrou para superar tal beco sem saída. O filósofo-espadachim conhecerá cortes, exércitos e pessoas das mais diversas condições e experiências.

Georg Solte, o reputado chefe de orquestra de origem húngara, diz hodiernamente: “Uma viagem constante, um estudo constante. Já não se é isto ou aquilo. Quando somos cosmopolitas já não sabemos bem o que somos.” Tornamo-nos estrangeiros no nosso próprio país e no nosso próprio tempo e meses após os meus muitos milhares de quilómetros pela Europa, em Agosto, continuo “atordoado”.

Os pais dificilmente lhe conseguiram dar um curso médio, quando parte das deslocações se fazia ao dorso de animais que também transportavam o farnel. Trazendo consigo os horizontes originários, mas cheia de presença e afirmação casou com um homem de haveres. As suas incólumes religiosidade, subtileza e inteligência, foram os alicerces que deu aos filhos e filhas, todos já com a Universidade concluída e emprego assegurado. Vale mais que uma muito considerável quantidade de gente licenciada que nem sequer sabe que “a nobreza discute questões; os criados falam de pessoas” (provérbio inglês); que nem sequer intui que, mesmo que não possam viajar nem sejam poliglotas, ler é absolutamente obrigatório – talvez sobretudo o que os choca e lhes parece absurdo. Se lerem dar-se-ão conta, v.g., da vacuidade do seu título universitário – que pode, todavia, suscitar montes de vénias a ingénuos.

Guarda, 18-III-03

P.S.: Está tramado Dr. António Ferreira! Está tramado e bem tramado. Aliás, o título do seu texto ilustra-o cabalmente. E tramado está Portugal, visto que a Imprensa está cheia de opinantes como o Senhor.

Desde logo, permita-me, peça a sua mulher, licenciada em Filosofia, que lhe dilucide meia-dúzia de conceitos: alteridade, projecção, diacronia, psitacismo, doxografia e epistemologia. Digo-lhe isto tudo como amigo, como muito bem sabe.

Muito obrigado por ser meu leitor.

Por: J. A. Alves Ambrósio

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