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Da Alemanha (IV)

Se o leitor tem um amigo alemão, um amigo de quem recebeu atenções que não receberia talvez na sua própria pátria, e com ele troca presentes quando se visitam, seja na Suábia ou em Ems, sabe, desde logo, duas ou três coisas: no momento em que voltam a encontrar-se, por mais aberto que seja o sorriso dele, a força com que ele o abraça nunca é a força com que o leitor o abraça. Um amigo alemão é um amigo profundo, genuíno. Com um espanhol é como se estivesse com um conhecido de sempre – mas a idiossincrasia alemã desafia-o a penetrá-la, a identificá-la. O leitor não se esqueça que a amabilidade, a amizade, só pode existir com distância, com respeito. Os alemães são profundos, isto é, não são crianças nem gente superficial (passe a tautologia) que vá pelas primeiras impressões, por psicologismos.

É fácil ter como pressuposto que esta é uma característica da identidade nacional. A Filosofia, a Arte e a Ciência aí estão a corroborá-lo. O seu juízo é sempre certeiro? Bastaria a adesão ao nazismo para o negar. Mas se o juízo não é sempre certeiro, a sua profundidade tem que ter-se como um muito interior pressuposto.

E essa parece-me a razão por que o trauma provocado pelo nazismo deixou tão avantajadíssimas marcas. Na Alemanha, os manequins, nas montras, são inteiramente negros ou cinzentos e a mensagem é óbvia: ninguém nos acusará de arianismo, pois os “altos e louros” são de outro mundo. Para mim é chocante (na Suécia são todos louros), mas o imperativo é inquestionável. Pagamos pelo mal que fizémos e não nos acusarão mais, dizem-nos.

O trauma resultante de um tão cabal quanto possível conhecimento do nazismo e as sequelas da derrota, o trauma, dizia, foi de tal magnitude que os alemães, em não raros casos, passaram a negar o valor, a validade da sua própria História. Como se nos dissessem: onde maiores réprobos que nós? O leitor conhece o ditado “fazer o mal e a caramunha”? Os germânicos estão num absolutamente exponenciado antípoda.

Günter Grass, esse Nobel da Literatura (nem por sombras o associe a uma nulidade cultural chamada José Saramago), também galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias em Literatura e artista de mérito, caiu no ridículo (Der Spiegel noticiava-o logo na primeira página) quando declarou ter pertencido ao nazismo durante a juventude.

… Caiu no ridículo, porque passou a vida a anatemizá-lo. A confissão só enobrece um homem.

Anselm Kiefer, um nome cimeiro da arte contemporânea, diz que ao nazismo não se deve nada, que nunca fez nada.

Nos inícios do transacto Setembro, no Museu Guggenheim de Bilbau, além de uma exaustiva exposição do artista, ouvi-o, também, em video-gravação de há dois ou três anos, salvo erro, feita na Tate Modern (nome actual da Tate Gallery londrina). Ouvi-o durante 85 minutos.

Se considerarmos Tácito (“Todas as grandes questões estão cheias de ambiguidade”) – e Tácito é incontornável – , declarando – absolutamente – que os Direitos Humanos são infranqueáveis e, portanto, o nazismo uma monstruosidade – como o gulag ou o estalinismo –, considerando tudo isso, onde a resposta à pergunta: por que vou eu já no meu quinto VW? E por que é que as linhas do actual “carocha” são a quinta-essência em Filosofia estética ou… em Estética filosófica?

“Atraímos para nós o que condenamos aos outros” pode ser uma máxima muito esotérica. Mas eu considero-a absolutamente perfeita, o que significa, ademais, que ainda não encontrei melhor preceito.

À custa de criticarmos com tanta veemência (refiro-me a Kiefer, claro e por exemplo) somos como o gato escondido com… o rabo de fora. E o facto é que, se a cultura de Anselm Kiefer é arrasadoramente impressionante, há críticos de arte que, com total naturalidade, o taxam, precisamente, de… nazi.

No seu esforço de exorcismo da inenarrável maldade nazi, Kiefer, em clara acção de catarse, ao lembrar os heróis da cultura germânica, arrola Beuys, esse artista de tão mediático e proeminente protagonismo. Terá, todavia, Kiefer esquecido que Beuys foi aviador nazi, que, ao ser derrubado, ferido, pôde escapar com vida graças ao desvelo de camponeses tártaros que, com sebo e agasalhos, lhe propiciaram continuar a viver? Terá olvidado que as obras do ex-aviador da Luftwaffe – nome cimeiro da arte do século XX – ressumam espiritualidade e que não é improvável que tal espiritualidade já existisse quando servia o “mal absoluto” (salvo erro a expressão é de Hannah Arendt)?

Este “mal absoluto”, como reflexão e subsequente empenhamento, é um assédio que não pode largar-nos.

Guarda, 14 – X –07

Por: J. A. Alves Ambrósio

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