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Cyber qualquer coisa

Tresler

1.Conheço-te bem. Escapas por entre os dedos das mãos como a água da torneira, não te deixas agarrar, respondes torto frequentemente, defendes-te como se estivessem sempre a acusar-te do que supostamente tu não és capaz de fazer. Intimidas mesmo, sobretudo no meio do grupo, e exploras a liberalidade da sociedade, que te deu o conforto, e a passividade da família, que te criou primeiro com poucos beijos e depois com pouca conversa. Há dias foste tu que disseste, vaidoso, que há um chip avariado dentro de ti. A rua é o teu mundo, com regras muito diferentes das da escola. Em grupo impões as tuas regras, como se estivesses lá fora. Manejas o telemóvel como ninguém, vai-lo guardando no bolso para as consultas e as mensagens quando o professor está distraído, utiliza-lo como uma arma. Desde há dias que no entanto desconfio de ti porque um colega de outra turma se queixou de uma perseguição via Facebook numa conta com nome falso e fotografia que ninguém conhece. Os comentários utilizam vocabulário que encaixa no teu. Parece que o teu chip avariado precisa de sangue. Já não te chega a fuga à escola e a refilice, precisas agora de mostrar o teu poder em duelo desigual. Mas qualquer dia és apanhado, fica seguro disso.

2.Conheço-te bem. No final da primeira aula achei esquisita a tua vontade de ficares junto à secretária do professor sem dizeres nada e à espera de conversa e perguntas. Mais esquisita foi a ideia de assim continuares aula após aula, no primeiro mês, comigo a espantar-te e a dizer que fosses brincar com os colegas. Ao fim de várias aulas a tua timidez juntou-se à de outra colega e tornou-se em simpatia mútua, simpatia calada já longe da minha alçada (“as duas caladinhas”, dizem as colegas, que não vos dão valor). No entanto desde há poucas semanas voltaste a vir silenciosa para a minha beira, esqueceste-te de que tens pelo menos uma amiga da tua idade. Parecias distante, atordoada. E finalmente no princípio desta semana uma colega tua conseguiu provocar a minha perplexidade ao dizer-me num momento de coragem que alguém quer ainda afundar-te mais na tua toca, mandando-te mensagens assarapantantes por uma rede social qualquer. Tudo aponta para um ou uma colega que está a sentir-se feliz por te ver assustada e se julgar maior do que tu. Fizeste bem em não responder e ainda bem que um colega conseguiu furar o bloqueio do medo e da passividade. Prometo: vamos apanhá-lo(a).

3.Conheço-te bem. És campeão do League of Legends ou do Contra Strike, passas a noite a jogar, pões o despertador a tocar para as 3 da manhã para ires fazer aquela jogada. Dominas as redes sociais todas, postas que te fartas, fotografas, envias, és o campeão de popularidade. Mas durante o dia tens sono, não rendes nas aulas, os professores irritam-se contigo. Não respondes, bocejas e quando respondes, não são muito agradáveis as tuas palavras. Achas os teus pais uma maçada, insistentes contigo e ultimamente desistentes de ti. À hora da refeição colocas o telemóvel ao lado do prato mesmo quando os teus pais já te disseram cem vezes que “à hora da refeição não!”. A tecnologia finalmente tornou-se tua aliada: depois de muitas zangas os pais já calejaram e já não dizem nada. A recomendação da escola aos teus pais de que tecnologias só na sala comum e de que se devem reservar momentos em família sem tecnologias pelo meio fazem-te rir. Os teus pais, que fizeram a escolaridade com sucesso e que tu chamas agora de analfabetos, não conseguem mandar em ti. Por isso mandas tu neles.

4.Conheço-te bem. És minha vizinha e levo de vez em quando o teu filho para a escola. A vida não te deu o que querias e tens uma profissão frustrante e maçadora. A Internet e as redes sociais são o mundo do teu filho e, embora domines de modo geral a Internet, tens receio de entrar no mundo dele. Às vezes sentes que o teu filho faz coisas que te esconde ou que vai para o quarto para conversar ou jogar. Sabes que há coisas em que se calhar poderias intervir, se tivesses coragem. Não sabes mesmo se os maus resultados escolares têm alguma coisa a ver com o vício das teclas. Ontem vieste à escola participar numa sessão com outros pais e verificaste que és mesmo “analfabeta” no mundo digital, como ele te chama. Ao ouvires o preletor, ficaste alarmada com o mundo sórdido que está a vibrar por detrás das aparências benfazejas do “sempre em contacto”. E ficas sem saber se é melhor mergulhar nesse mundo para ficar perto dele e na sua onda ou se, pelo contrário, será melhor guardar a distância para mostrar a diferença e poder atuar. Encontraste também uma antiga colega de liceu que te gabou as excelências do Facebook e aquilo que lá se pode partilhar. Ficaste entusiasmada e vais com a ajuda dela criar uma conta. Um dia deste pedes amizade ao teu filho pelo Facebook. Será que ele ta dá?

(Qualquer semelhança com personagens reais é pura coincidência. Para sentir como se pode ameaçar e intimidar pelas redes, leia: “Cyber-bullying”, de Sónia Seixas, Luís Fernandes e Tito de Morais, Plátano Editora, Lisboa, 2016. Sónia Seixas esteve há oito dias na Guarda a apresentar este livro)

Por: Joaquim Igreja

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