Arquivo

Curie

No princípio, era o verbo e eu lia tudo: “Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido” (Proust). Não esqueço essas horas, nem dou por inconvenientes a desordem, o acaso e a liberdade com que li o que li, porque, sem saber, assim me preparei para o inesperado da vida e o imprevisto do mundo. Hoje, que vejo gente a ler com tanta avareza e tanto cálculo, como se a vida fosse a disciplina de um curso, lembro-me desses dias e dessas noites de papel, em que era feliz por trocar tudo pelo livro que tinha debaixo dos olhos ávidos e cansados.

Ève Curie morreu agora, em Nova Iorque, com 102 anos, e eu, quando soube, voltei-me para trás, olhando como olha aquele que pressente alguém que o quer alcançar. A biografia que a filha escreveu da mãe, intitulada Madame Curie, veio do passado até mim e eu fui apanhá-la à estante. Agarrei nela e foi como se, sob as minhas mãos de agora, estivessem as minhas mãos de outrora, mais leves e mais confiantes, a passar aquelas páginas que se lêem como uma epopeia e que não me deixaram descansar enquanto as não acabei. Lembrei-me desses dias e dessas noites já distantes em que lia os livros tanto como eles me liam a mim. Este foi um deles, com o seu começo que diz: “Há na vida de Maria Curie tão elevado número de grandes rasgos que sentimos a tentação de contar a sua história como se fora uma lenda.” E é como uma lenda que essa vida é aí contada. Tudo ali é alto, predestinado e exemplar. Trata-se de um livro moral, em que tudo é heróico: a saída da Polónia, o estudo, o sacrifício, a fome, o frio, o polónio e o rádio, o Nobel da Física, a viuvez, o Nobel da Química, a guerra, a passagem de testemunho, a doença, a morte. Ève ergue uma estátua de palavras a sua mãe e eu, quando acabei a leitura, fitei-a. Mas, ao ver aquelas feições de uma beleza sóbria, não sabia se era o seu rosto que via, se era o rosto da Ciência que já com ela se confundira.

Anos depois, li outra biografia de Maria Curie, escrita por Françoise Giroud. O tom era diferente, porque não podia ser o mesmo. Eram diferentes a autora, o tempo, o mundo. Essa biografia não retirava nada à imagem da cientista. Mas acrescentava bastante à imagem da mulher. Dizia o que no livro de Ève era calado: o amor de Maria por um homem casado, o grande físico Paul Langevin, e a terrível campanha de injúrias que lhe foi feita e que a levou ao exílio em Inglaterra. Esta biografia deu-me uma outra Maria. Alguns dirão: mais humana, porque menos perfeita. Eu prefiro dizer: mais humana, porque mais perfeita. É que, quero acreditar, o amor de Maria por Langevin aperfeiçoou-a tanto como a descoberta do rádio…

Eu estava em Paris quando os despojos mortais de Maria e Pierre Curie foram, com a euforia fúnebre de que os franceses são capazes, trasladados para o Panteão. Ouvi o louvor que saía da boca de um Mitterrand moribundo, a poucos dias do fim do mandato. Ève, que eu julgava já morta, estava presente e fiquei feliz, porque foi por ela que conheci Maria. Lembro-me como se fosse hoje: quando li o seu livro, fiquei a respirar melhor.

Por: José Manuel dos Santos

Sobre o autor

Leave a Reply