Arquivo

Crónicas do solstício

Selecção Natural

Avançando a passos largos para a incerteza, o país agita-se e pasma com as revelações sicilianas de Carolina. Nem Camilo poderia ter imaginado tal enredo. A incrível ERC (da Comunicação Social), uma entidade supostamente isenta, lança um comunicado (http://www.erc.pt/index.php?op= vernoticia&nome=noticias_tl&id=18) inqualificável, dando lições de moral ao Director do “Público”. Espera-se que, depois disto, o último a sair desta coisa apague a luz. O sistema “cinema em casa” e mais uns tarecos do sr. Veiga, regressando ao lar, teve cobertura televisiva nacional. Luis Filipe Menezes convoca uma reunião do Conselho Nacional do PSD para dizer cobras e lagartos do seu vizinho autárquico. Que entretanto “deu” de mão beijada o Rivoli à produtora de Filipe la Féria. Na reforma das custas judiciais, o Ministro da Justiça, disfarçado de Zorro e de espada em punho, pretende que “quem ganhe em tribunal não paga advogado. Além das custas habituais dos processos, quem perder um caso em tribunal terá de pagar uma fatia dos honorários do advogado da parte adversária”. O delírio tecnocrático no seu auge! A boa notícia é a nomeação de Maria José Morgado para coordenar a investigação do Apito Dourado. Uma decisão corajosa do novo PGR, que coloca a mulher certa no local certo. O relativismo ético que tomou conta do País é um encorajamento à corrupção, de que o futebol é um autêntico “saco azul”. Agora acabaram os paninhos quentes. A verdade continua à espera.

*

Esta é a chamada época alta do turismo de montanha. Observar os turistas que visitam a Guarda neste período proporciona uma série de registos. Desde logo, ressalta o aparato algo excessivo dos veículos “todo o terreno”, equipados como se participassem numa expedição ao Ártico. O mesmo se diga do vestuário. Excessivo para o verdadeiro rigor do clima. Que justifica um agasalho suplementar, é claro, mas não uma autêntica mostra das últimas novidades das lojas da especialidade. É como se o desconforto que se adivinha no rosto dos forasteiros exigisse uma diferenciação “normalizada”, defensiva. Aquela de quem está perto dos centros de decisão e consumo, face ao exotismo inóspito de um lugar que se calcorreia, mas não se escuta. Como um descargo de consciência sazonal, dos ricos em relação aos pobres, da agitação em relação ao silêncio, tanto mais episódico quanto mais se pressente que a matéria esmaga e é infinitamente exigente de tempo e de mistério. No fundo, vêm reivindicar uma imagem que já lhes foi vendida. E por nada deste mundo abdicariam dela. “A percepção é a realidade”, dizem os gurus do marketing. Nem mais.

*

Recentemente, participei no programa Café Mondego, na Rádio Altitude, a convite do seu criador e apresentador, Américo Rodrigues. Nesta época natalícia não se esperariam grandes temas fracturantes, a debater naquele espaço. Evocaram-se algumas tradições, questionou-se a importância e o papel a desempenhar pelo que ficou do mundo rural, da necessidade de preservar a memória e não só. Mas o debate foi talvez uma nota de rodapé à presença enorme de Júlia Fonseca, 80 anos, cantora popular de Aldeia do Bispo. Que fez do programa um momento raro e emocionante para quem o escutou e para quem nele participou. Cantou, recordou histórias de outros tempos, às vezes com ironia, mas sempre com uma sagacidade espantosa. Uma verdadeira lição.

*

Sobre o terrorismo jihadista já disse o que pensava. Ao que parece, no Líbano, o Hezbollah continua armado até aos dentes, desafiando tudo e todos. A generosidade do irmão sírio, traduzida em armas e dinheiro, está de pedra e cal. Por cá, a ecuménica malta do costume, sempre disposta a atirar pedras aos americanos e aos israelitas, e a condenar a “heresia” dos cartoons dinamarqueses, vai assobiando para o ar. Mas o radicalismo islâmico, e o rasto de ódio e de morte que lhe está associado, nunca será compreendido se não se tentar perceber a motivação específica do terrorista. Ao contrário do que os relativistas pensam, não são as razões ideológicas, emergindo do sub-desenvolvimento crónico do mundo islâmico, ou a falta de perspectivas para muitos jovens, o que empurra determinado “soldado de deus” para uma carnificina. É bom lembrar que os actos terroristas mais sanguinários nos últimos anos foram perpetrados por jovens confortavelmente instalados na classe média. Que antes são recrutados para um tirocínio no Iraque ou no Afeganistão, lugar para o brainstorming final. Existe pois uma motivação autónoma, auto-suficiente, alheia a factores sociais, para a violência. Que rompe com as restrições decorrentes da própria fé islâmica e afirma-se como missão redentora e inquestionável. A jihad é o ópio que apaga o último vestígio de humanidade. Esse terrorista está mais próximo de Alex – o protagonista psicopata do filme Clockwork Orange – que do Corão.

Por: António Godinho

Sobre o autor

Leave a Reply