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Crónica sobre uma crónica do Lobo Antunes que ele não sabe sobre que era

observatório de ornitorrincos

Fico sempre espantado com as crónicas de algumas pessoas, as suas palavras, as suas frases, as suas pontuações, as letras minúsculas a seguir a um parágrafo. Olha, uma frase sobre flores logo a seguir à introdução, as palavras soltam-se, uma a uma, dos dedos do cronista, tudo isto em silêncio, enroladas e secas.

Tenho agora mais palavras em duas páginas da Visão que no Dicionário da Academia. Se calhar morri sem dar por isso e continuo a existir na caneta Montblanc de Malaca Casteleiro. Tocam à campainha e é um gajo com revistas

– Assine aqui, se souber

garatujo a hora, garatujo o nome, carregam no botão do elevador que neste prédio avaria semana sim, semana não, a mim não me apanham lá a não ser com as vizinhas do segundo, somem-se e eu com mais uma Visão nos braços. Vou deixando os artigos do Boaventura e da malta de esquerda não importa onde: não as posso encostar ao defunto (o semanário Sol).

A voz da minha mãe ao telefone, logo tinha de fazer o telefonema quinzenal naquela hora, a perguntar por mim como sempre. Coitada, tem passado alguma aflição com os textos do filho. Olho para ela e vem-me à ideia de que as minhas crónicas depenam as pessoas, tiram-lhes bocados. Até a ela que as não lê, ali está ela a olhar para dentro, por vezes numa espécie de sorriso, quer dizer não é a boca que sorri, é ela a pensar

– Como é que alguém lê estas parvoíces que ele escreve

com medo que alguém leia isto e perceba que afinal o texto não vale um chavo e é por baixo dele que a minha mãe esconde outra revista. Chama-se Manuela. A minha mãe. A revista chama-se Selecções do Reader’s Digest. Em criança julgava que as pessoas, conforme a ocupação, mudavam de nome. Por exemplo Lobo Antunes fica bem num escritor, não assenta tão bem num extremo esquerdo do Benfica e então trocavam o duplo apelido por um diminutivo, Chibi ou Cajó, por exemplo Sócrates não calha bem num vendedor de computadores portáteis e então muda-se para Empregado do Mês da Microsoft e ao começar a dizer coisas sem sentido mas com ar sério recupera-se o Sócrates, por exemplo Lino desafina com espertina de maneira que se fica à espera que acorde da soneca e entretanto dizemos Senhor Ministro, mas a minha mãe foi apenas Manuela sempre e não a concebo Ferreira Leite nem Moura Guedes embora para mim fosse

– Mamã

e estava encerrada a questão, tal como a caixa das bolachas antes do jantar.

Entretanto acho que me desviei do princípio deste texto, ou seja de ficar sempre espantado com as crónicas de certas pessoas. E os textos que não entendo a desprenderem-se dos agrafos. Se me deitasse no chão da sala acabavam por cobrir-me por completo e eu debaixo deles dando pela empregada a abrir a porta e a atirar aquilo com o papelão. Lá vou eu para o contentor, quando digo eu, digo os jornais todos e os meus textos a voltarem de onde vieram, o caixote do lixo.

Claro que se eu perguntar à empregada para me explicar as crónicas do Lobo Antunes ela não liga: não acredita que as revistas falem e se falarem nada melhor que empurrá-las com força para o fundo.

Jantei sozinho em frente ao computador onde uma rapariga de cabelo pintado de loiro se divertia sozinha. O que fará agora? Sentada diante da webcam, com umas cuecas esquecidas nos joelhos?

A certa altura silêncio e os leitores a perguntarem-me o que pensava eu quando escrevi esta crónica. Não respondi. Para quê? É que se respondesse dizia-lhe que não pensava em nada, pensava sobre que raio era aquela crónica do Lobo Antunes e sobre que é esta que quase a copiou, pensava no vácuo.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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