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Crónica sobre coisíssima nenhuma

O Caderno Negro

Tu e os teus velhos tristes. Maio nas ruas do pelourinho e os loucos com os olhos postos no vazio e as mãos embaraçadas, sem nada que prender. O hospício velho, apalaçado, já a caminho da serra. Fim de tarde no Jardim, o sol a fugir por detrás da montanha. Apetece subir. E o coração, coisíssima nenhuma, num sítio qualquer, na fronteira entre a lã e a neve. Para não chorar, sempre preferiste chover. O poeta sabia que debaixo da cidade-treva corriam rios amorfos e quartos raspavam fogo pela calada da noite. Jogo. Mansões abandonadas. Famílias de industriais mortas. A serra, de noite, pequenos fios de luzes a gritar no meio da escuridão. A Covilhã, toda urze nada zimbro, vista de cima. Da varanda dos carqueijais, antes de amanhecer, as ruas parecem serpentes iluminadas. Do lado de lá, na casa do Guarda, em Alcongosta, ouve-se um fiozinho de água a sério a correr. E as cerejas, caprichosas, a maquilhar-se para quando o sol as vier beijar. O vale glaciar, pobreza, espaço e espetáculo. A solidão do vento, carquejas a dançar. A serra é mais bonita no Verão do que no Inverno. O poço do inferno, monte de pedras a balançar na água e as fadas exiladas no covão d’ametade. Os cântaros. A estrada, cobra peneirenta. Pedras. O pôr-do-sol no Pião. Tardes roxas. O som sobe e cá em cima ouve-se tudo. A cidade acaba de repente, contra a encosta. É Maio, voam pedaços de qualquer coisa branca pelo ar, ao fim da tarde. A partir das quatro horas não há sol. Há a sombra da Estrela. Subir, descer. Voltar a subir até à Saudade. No cimo, o Calvário das serenatas e da insónia. E o velho hospital. O cemitério na curva apertada que desce. E o coveiro, desconfiado. Os filmes do Cineclube no Cine-Teatro numa cine-tarde. A polícia, ainda ao pé do pelourinho. O Montalto no Sporting. E a livraria na rua que vai para a garagem de S. João, agora só casas-fantasma, vê-se mesmo o pó nas fachadas. Os semáforos mais à frente. A fonte das galinhas – houve galinhas na fonte, um dia? As ribeiras pobres e discretas. Madrugadas, passos, álcool. A igreja do azulejos, o mercado em frente aos Leões. Os carros a pedirem, em fila, para subir à serra. Sete fontes. Nunca neva. Santo António, a torre. As tempestades – não há cidade igual para ver tempestades, raios a lutar e a morrer. A estrada da Vila do Carvalho, onde te encontraram, de manhã, dentro do carro. Enroscado no banco de trás, cansado de lutar. Vinte e cinco anos, uma eternidade. (A morte de mãos dadas, na voluptuosidade de um baloiço, no parque infantil ao lado da casa, de mãos dadas com o amor. A morte sentada da sanita da casa de banho, a ler a Visão, na página certeira da crónica do Lobo Antunes – e sorrir e a acenar, com as suas calças de morte entre os joelhos e os azulejos do chão. A morte olhar, apreensiva, por cima dos óculos de morte, à hora do telejornal. A morte desfeita e espalhada no vidro do carro, na pressa da auto-estrada que leva ao Céu. A morte é um inseto gigante). Já foste mais bonita, cidade coisíssima nenhuma. E de encanto, que se enrosca e amaldiçoa. Serpente. Estás velha, como os velhos e os loucos do pelourinho, em Maio. Esfera solta na estranha cadência dos dias. Se um dia uma bola gigante rebolar encosta abaixo deixas de ser quem és. Tornas-te coisíssima nenhuma.

Por: Rosa Ramos

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