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Crónica preguiçosa de fim de verão

Tresler

Um estranho desânimo por um verão sem incêndios e com bombeiros a descansar.

Os veraneantes portugueses a encherem as praias às duas da tarde, mas com receio que apareçam as reportagens TV a meterem-se com os viciados de sol que vão ter de arranjar uma desculpa esfarrapada.

Festivais a esmo no verão, à média de 1 festival por semana, músicos anglo-saxões, hiper, mega, super, tudo fashion, rapaziada aos gritinhos e a abafar o repórter da TV quando este faz o direto.

200 brinquedos em casa e o miúdo quer mais um.

100 tipos diferentes de bolachas nas prateleiras do hiper e não consigo decidir-me por qual levar.

Uma senhora de meia idade a compulsar os frascos de dietas, a ler os ingredientes e as promessas e a acreditar (é desta).

Um smartphone topo de gama e mesmo assim a menina espera um novo aparelho (da avó ou da tia) no Natal.

Daqui a pouco todos contactáveis a todas as horas do dia, filmados ou sinalizados por GPS, porque queremos, porque estamos cheios de medo.

1 milhão de músicas descarregadas por dia, todas vulgares uma semana depois.

1 milhão de casas desocupadas, com telhas partidas, goteiras e paredes a cair.

Uma reação de estranheza, mesmo de um quase escândalo, de um jovem de 16 anos a quem se perguntou se leu algum livro em férias.

80% dos runners a correr com phones, a curtir a música e a suportar a corrida.

200 SMS por dia (para cada lado) e o rapaz não acha muito.

Milhares de roupas baratas em saldos e outlets com 70% de desconto, os pobres e remediados a vestir na moda.

Uma agulha num palheiro para encontrar um anúncio sem palavras inglesas.

1 milhão de povoadores prontos a povoar o Interior, vindos do Norte de África.

Sistemas de tratamento de água a trabalhar a fundo para regarmos o quintal e para irmos comprar água engarrafada ao super.

Os livros (que ninguém lerá) a servirem de oferta pelos jornais para segurar compradores.

Um comprador do EXPRESSO plasticodependente, exaltado por o vendedor lhe perguntar se quer o respetivo saco de plástico para o levar (ele tem direito ao saco e ponto final, diz ele).

Jornalistas transformados em vedetas, o contrário do que era suposto (apagar-se diante da notícia ou dos entrevistados).

As reportagens de fundo judicial com jornalistas a tomar partido.

Equipas portuguesas de futebol misteriosamente a jogar sem portugueses e a defrontar equipas estrangeiras com vários portugueses.

Um dia sem computador e a vida fica virtualmente nada.

Milhares de deserdados pacíficos a fazer “meets” nos hipers e centros comerciais.

Uma mala de cosméticos para cada mulher em casa.

As ruas da Guarda terrivelmente desertas aos fins de semana, cidade quase fantasma.

As lojas entaipadas ou fechadas ou despovoadas.

Um semanal e irritante saco de garrafas que encontro no contentor de orgânicos (que fica ao lado do ecoponto).

Um grupo alegre de caminheiros, outro de ciclistas, tudo trajado a rigor.

Um facebook diário com o normal da vida: mostrar os filhos, mostrar os netos, mostrar os dotes, mostrar os pratos, mostrar os namoros, mostrar os cães ou os gatos, fazer habilidades, mostrar que se aguenta muita cerveja, fazer caminhadas, alinhar no contra, mostrar que estivemos naquele sítio.

Treze mil livros editados em 2013 em português, muitos mais milhares em francês, muitos que ainda gostaria de ler e que, resignadamente, sei que nunca lerei.

Partidos do arco da governação em autofagia e Marinho e Pinto numa crise narcísica (a propósito: Marinho, depois de criar um partido, continua a ser independente?).

Uma incompreensão coletiva pela solidão escolhida ou pelo silêncio total.

Um supremo cansaço… um supremíssimo cansaço…

Por: Joaquim Igreja

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