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Crónica de Montevideu

Theatrum Mundi

No apartamento do terceiro piso do edifício Parque Rodó, entre o Bulevard Artigas e a Avenida 21 de Setembro, distrai-me o trânsito pachorrento mas ruidoso da capital do Uruguai. Lá em baixo os autocarros passam como manadas de paquidermes urbanos e o seu relinchar remete-me para uma América Latina primordial de que, por aqui, sobrou pouco. Ponho a tocar um disco de Julio Sosa, o grande cantor de tangos do Uruguai, e acrescento-me ao quotidiano de Montevideu embalado por essa toada tão caraterística da região do Rio da Prata. Estou aqui pelo sexto ano consecutivo e pouco a pouco começo a fixar algumas rotinas. O caminho a pé para a universidade, os passeios pela Rambla que sempre me fez lembrar Ipanema, o jornal diário, as crónicas da rádio. A discussão do dia, inevitável, que deixa os uruguaios entre indignados, irónicos e sorumbáticos, é a gafe do presidente Mujica. Numa cerimónia pública, e com os microfones supostamente desligados, o presidente uruguaio produziu comentários pouco simpáticos para com a presidente argentina e o seu falecido marido, também antigo presidente, e trouxe à ordem do dia as rivalidades tradicionais entre os dois países vizinhos. Na verdade, o presidente não se deu conta de que as suas palavras já estavam a ser transmitidas pelo canal da presidência e foi surpreendido a comentar que “aquela velha (a presidente Cristina Fernández de Kirchner) é pior que o vesgo (o falecido Néstor Kirchner)”. Ainda que o espanhol falado no Rio da Prata seja muitíssimo coloquial e utilize expressões aparentemente rudes, sublinhando traços físicos e de caráter, de forma carinhosa ou afável como ‘o vesgo’ ou ‘o gordo’ ou ‘a lingrinhas’ ou ‘a negra’, neste caso a conversa é outra. De Buenos Aires a reação oficial não se fez esperar e a presidência divulgou um comunicado a deplorar o comentário. As relações entre vizinhos e familiares costumam ser assim, marcadas por códigos de linguagem muito próprios e coloquiais mas que por vezes pisam o risco. Por estas bandas a história está cheia de episódios como este, e hoje todos por aqui relembram o incidente que envolveu o antigo presidente Jorge Batlle ao afirmar em público, aquando da crise argentina do início deste século, que os argentinos são todos uns ladrões, do primeiro ao último. Pouco depois deslocou-se pessoalmente a Buenos Aires para pedir perdão…

É curiosa a relação do Uruguai com os seus vizinhos e com a América Latina como um todo. País pequeno, com escassos três milhões de habitantes, sem população indígena dizimada pelos espanhóis e muito poucos descendentes de escravos africanos, o Uruguai ainda vive da memória da Suíça sul-americana que foi nos anos 1950 e 1960. Como escrevia Juan Martín Posadas um destes dias no editoral do diário El País uruguaio, durante muito tempo os uruguaios não se consideraram latino-americanos, sentiam-se diferentes e satisfeitos com a diferença: “Para nós, a América Latina era um território de vulcões e terramotos, de selvas impenetráveis e montanhas majestosas, de comidas picantes e epidemias devastadoras, de índios cabisbaixos e ditadores militares”. A América Latina dos uruguaios era um continente distante, de fraturas sociais crescentes e impossíveis de ultrapassar, de pobres famélicos e ricos exuberantes que gastavam a sua riqueza em Paris e Monte Carlo. Como continua Posadas, “Um dia, há pouco tempo, descobrimos que éramos bastante mais latino-americanos do que pensávamos: nem tão cultos, nem tão democratas, nem tão equilibrados como pensávamos. Da lista de latino-americanidades que gostávamos de não partilhar tivemos que apagar os ditadores militares, os políticos populistas, as escolas que não ensinam, as prisões infernais, os bairros de lata com as suas leis próprias e com as suas muitas misérias. Latino-americanizámo-nos durante o último terço do século XX, tempo antiuruguaio, época de grandes e inesperadas capitulações”.

Aquilo que Posadas não diz é que a capitulação e o fim de um certo modelo social uruguaio, que tornava o país mais europeu do que latino-americano, chegou com os resgates do FMI e o condicionalismo da ajuda externa. Hoje todos se queixam do sistema nacional de saúde, da escola pública e da universidade estatal, da degradação do centro histórico da capital, os transportes públicos são para os pobres. A classe média desconta para seguros privados e põe os filhos nos inúmeros colégios privados, em geral estrangeiros, deplorando todos os dias como a escola pública não ensina… Este talvez seja o futuro do Portugal pós-troika, o da progressiva latino-americanização e de um tempo antiportuguês.

Por: Marcos Farias Ferreira

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