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Corpo e alma

Há duas semanas atrás escrevi uma crónica sobre um tema que nos toca a todos – o Amor – e, nesse momento exprimi também a dificuldade e quase impossibilidade da sua definição, no entanto é esse obstáculo que me impele obstinadamente continuar a escrever. Se há tanta gente que passa a vida a falar de política e futebol porque não hei-de continuar eu a falar sobre o amor?

Na primeira crónica, abordei, entre outras possíveis enunciações sobre o amor, o amor platónico e hoje partilharei com o leitor uma outra perspectiva, a meu ver extraordinária, feita por um escritor mexicano, Prémio Nobel da Literatura em 1990, de nome Octavio Paz. Numa espécie de “bíblia do amor”, Octavio apresenta aqueles que são para si os elementos constitutivos da nossa imagem de amor: a exclusividade, o obstáculo e transgressão, o domínio e a submissão, a fatalidade e a liberdade, o corpo e a alma.

A exclusividade parece ser, de facto, a exigência ideal numa relação amorosa uma vez que o amor é uma atracção, fruto de um magnetismo secreto e todo-poderoso, para uma única pessoa, para um corpo e uma alma. O amor é um sentimento individual, amamos unicamente uma pessoa e pedimos a essa pessoa que nos ame com o mesmo afecto exclusivo. A exclusividade, explica o escritor, exige reciprocidade, o acordo do outro, a sua vontade e, por isso, o amor é também uma escolha e liberdade e, ao mesmo tempo, uma fatalidade «O amor é uma atracção involuntária por uma pessoa e a voluntária aceitação dessa atracção». Quando nos apaixonamos escolhemos a nossa fatalidade, independentemente do objecto a quem devotamos esse sentimento amoroso. Quer se trate do amor a Deus, a um homem ou a uma mulher, o amor é um enigma no qual liberdade e predestinação se enlaçam.

O segundo elemento é na sua essência polémico e diz respeito ao obstáculo e à transgressão porque o amor tem sido «contínua e simultaneamente interdição e infracção, impedimento e contravenção». Não nos esqueçamos que no Ocidente o amor nasceu nas cortes feudais, numa sociedade nitidamente hierárquica onde há uma dupla violação do código feudal: a dama deve ser casada e o trovador de uma classe social mais baixa. Este elemento está, por sua vez, estreitamente relacionado com outro elemento o domínio e a submissão.

O amor, já nos mostrara Camões «é ferida que dói e não se sente» é «servir a quem vence o vencedor» é dor e servidão. Ama-se incondicionalmente o outro, vive-se submissamente e, por vezes, aceita-se pacificamente o seruitium amoris como uma forma de vida. Como afirma eloquentemente Octavio Paz «(…) o amor não nega o outro nem o reduza a sombra, mas é a negação da própria soberania»

Por fim, o quinto elemento do amor consiste, contrariando a teoria platónica, na união indissolúvel do corpo e da alma. Platão celebrou a alma e menosprezou o corpo, porém o outro é um ser composto por corpo e alma e quando o amamos, amamo-lo num todo, amamos um corpo mortal, sujeito ao tempo e aos seus acidentes, numa alma imortal.

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

Mário Cesariny,

Poema, Pena Capital (1957

Por: Cláudia Fonseca

Sobre o autor

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