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Contra a Gordura Marchar, Marchar

Quebra-Cabeças

Primeiro eram só três ou quatro, com o professor Henrique à frente. Marchavam todas as noites esforçadamente da Misericórdia ao Sanatório e depois regressavam ao ponto de partida, de onde recomeçavam. Olhava para eles da janela do carro. Ou então de rabo sentado nas cervejarias, à frente de uns camarões ou de um pica-pau bem temperado, empurrados por quantidades inconfessáveis de cerveja. “Saem mais quatro finos para a mesa do canto”.

Passados uns anos, sem qualquer razão especial, lembrei-me de comprar uma balança. Depressa conclui que os tempos em que me podia considerar magro tinham passado. Não estava ainda propriamente gordo, que o peso até era quase o adequado para a minha altura, mas a distribuição era catastrófica e os meus melhores fatos precisavam todos de arranjos na zona da cintura.

Até que um dia, já lá vai um ano, à boleia de um notório hipocondríaco (o meu amigo Luís Soares) fui fazer “umas análises”. O resultado foi catastrófico: colesterol, ácido úrico, gama GT, pneu, finos, carne mal passada, anos e anos de sedentarismo e maus hábitos estavam reflectidos nas folhas de papel que o Vasco Queiroz me ia decifrando sem piedade. Quando acabou, fiquei a perceber que era um sério candidato a um AVC, a uma trombose, a um enfarte. Isto sem falar em diabetes e todo o tipo de cancros. Devia urgentemente mudar de hábitos alimentares e começar a fazer exercício físico. O Luís Soares, já agora, estava óptimo.

Durante o último Inverno, já depois de perder mais de seis quilos e mudar quase radicalmente de vida, comecei também a caminhar à noite, agora sob influência do Raul Amaral. A chuva interrompeu o programa, mas agora, com o bom tempo, é um crime ficar em casa depois de jantar. Uma primeira descoberta: há cada vez mais pessoas a fazer o mesmo. Vêem-se caminheiros por toda a parte, sempre em grupos, em passo acelerado. Antes de jantar, depois de jantar, em vez de jantar, há dezenas, centenas de pessoas a caminhar pela cidade. A zona que vai das piscinas municipais ao parque industrial é das preferidas, mas também há quem vá do Parque da Saúde às Lameirinhas, daí ao Colégio de São José (pela avenida Monsenhor Mendes do Carmo), à rotunda da Ti Jaquina, Central de Camionagem e suba daí, perigosamente à beira do enfarte, até ao Hotel e Jardim José de Lemos, para depois, triunfalmente, aterrar no Caçador e encomendar uns finos e um pica-pau de vitela mal passado. Este percurso tem de tudo: ascese, sacrifício, dor, recompensa final. Há religiões construídas a partir de muito menos. É também uma oportunidade para verificar que esta cidade não está feita para peões, com os seus passeios estreitos e cheios de obstáculos.

Poderão os detractores da coisa dizer que na cidade, a certas horas do dia, há largas toneladas de banha em circulação. É verdade. Mas são cada vez mais os circulantes e é cada vez menos a banha.

Por: António Ferreira

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