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Contra a Degeneração Social (uma fralda no meu carro; e outra na minha janela)

Uma amiga, de peculiar categoria, que teve a desdita de ficar viúva, dizia-me, a dada altura, no momento em que, veramente compungido, lhe fui apresentar os sentimentos: “Não anunciei o falecimento. A morte é demasiada íntima e só com esta intimidade pode estar-se em tal transe». O fino leitor já entendeu que só uma rara senhora pode estar a este nível do sublime – que é um sublime religioso ou um religioso sublime.

Morremos envoltos em mistério; e envoltos em mistério nascemos. No que toca à última parte da asserção baste lembrar que em famílias de 6, 7, 8 filhos, com a serenidade própria do óbvio, qualquer dos progenitores, referindo-se-lhes, declara: são todos diferentes uns dos outros. Dos 3 filhos que tiveram sempre ouvi dizer isto aos Pais.

Não transportamos – não somos – apenas o mistério de um dado momento; também o da terra, da Mãe-Terra. Dados tão claros que não carecem de esoterismo – embora também não lhe sejam alheios.

Ou escolhemos uma vida da mais alta qualidade, isto é, sabemos tão cabalmente quem somos, que queremos, donde vimos e para onde vamos, ou viveremos num limbo, num espaço neutro entre este esforço clarificador – grandioso, claro – e as “massas” (uso o termo orteguiano). Sou algo mais explícito: as massas que vivem na moda e no consumo, no momento que passa e no fanatismo dietético, que pode levar à… anorexia. Não me alongo. Ou vivemos como massa, última hipótese.

Não! Vivemos – e somos felizes – dominados pela exigência. Há, só nossas, uma alegria e uma felicidade a que temos direito. E que estão, em absoluto, ao nosso alcance. (Antes e depois do agonismo há o Divino).

Da minha casa vejo não apenas a casa dos Pais, a aldeia em que nasci e onde passei uma fagueira primeira infância, como os horizontes vão até à Raia e às montanhas já situadas nas “províncias” de Salamanca e Cáceres. E vejo carvalhos e castanheiros, pinheiros e giestas, árvores de fruto, a veiga ao longo do Noéme e o perene granito. Tudo isto se vê ainda melhor da Torre de Menagem ou quando, saído de frente da Cadeia, passeio até Vale de Estrela pelo Forte Velho.

E é tudo tão soberbo, que estes montes e vales, com a imponência da Serra, agora misteriosamente alva de neve, já não são sólido, nem líquido, nem gasoso. Estas são classificações racionais, intelectuais, científicas…

A estes montes e vales chamemos-lhes um lugar, um topos. Sucede é que este lugar é o meu espírito; e este espírito é o meu lugar. – E não há outro igual em todo o Mundo!!

Mais. Quando, de qualquer dos pontos considerados, tenho este horizonte a perder de vista – sempre foi para mim muito claro que a Guarda é uma emoção estética – sinto-me no seio da Mãe (-Natureza, entenda-se), a Mãe acolhedora, geradora, criadora, inominavelmente fautora de benesses. Tantas que nem sequer alguma vez poderemos contabilizá-las, tantas que apenas esperam de nós que as arrolemos para nosso próprio proveito!!

O fino leitor está, evidentemente, a pensar que estes são um registo e um discurso de requinte. Mas não é, precisamente, o que todos nós queremos ser – requintados?

A desafeição aos políticos é, agora, crescente e mais ou menos universal. E tem toda a razão de ser. Não só são ignorantes acerca da sua própria ignorância, como, em corolário, querem que paguemos os efeitos das suas apoucadas decisões. Para eles, a pressuposta finalidade da Vida – das nossas vidas – é “matéria” a que são alheios, estranhos, nefelibatas, digamos eufeumisticamente. Que o político tal ou tal tenha frequentado a universidade tal ou tal, isto só pode servir de credencial para alguém de perspicácia menor.

Os meus progenitores são estes topos, este espírito. Ou seja: a Maternidade não tem que sair da Guarda. Tem – isso sim – é que continuar. Se os políticos querem credibilidade ou respeito têm que esforçar-se por estar à altura de quem os adverte, os ensina, terem outro critério infinitamente além da mera gestão crematística.

É que, com inexpugnável força, perguntamos-lhes: Quais são os vossos ideais? Que distinção fazeis entre qualidade de opinião e quantidade de votos? Que conhecimento tendes, v.g., de História, Antropologia, Arte ou Espiritualidade? E, se acaso houve penúria na vossa infância, quereis compensá-la com algo que não o conhecimento e a interioridade humanos?

Todavia não somos enformados apenas pelo lugar – também pela História. Até Manuel Alegre, que, sem qualquer desprimor, é, evidentemente, um diletante, se insurgia contra o ir nascer-se a Badajoz, em vez de em Elvas. – Nasce-se é no lugar próprio. Quando Duarte Pio de Bragança nasceu, na Suíça, a cama estava assente em terra propositadamente levada de Portugal.

Nascemos envoltos em mistério – mas sobre o mistério que é o nosso temos intangíveis direitos. É tão íntimo e espiritual como o da conspícua viúva.

No meu carro trago uma fralda. Por outro lado, perante a aquariana elevação do Eng. Crespo de Carvalho e a militância da Rádio Altitude curvo-me na mais profunda homenagem.

Guarda, 2 – IV- 06

Por: J. A. Alves Ambrósio

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