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Conto do Novel Estio

Observatório de Ornitorrincos

Era fim de tarde naquelas primeiras tardes de calor. Rodrigo, sentado na sua esplanada preferida, rabiscava o seu caderno de apontamentos.

[Interrompo a narrativa para explicar que o nome Rodrigo foi escolhido ao acaso, embora não seja de descartar a possibilidade de haver contribuições do inconsciente que me tenham levado a escolher este nome. A identificação do nome evita-me de qualquer forma ter de explicar ao leitor que quem está à esplanada não é o narrador e também não é uma personagem do sexo feminino. Dito isto, prossigamos com a estória.]

Rodrigo, um publicitário não muito famoso nem muito rico, escrevia num caderno sem linhas de capa preta palavras soltas para a campanha de uma fábrica local de rolhas de cortiça. Esta Primavera gelada tinha sido particularmente difícil para Rodrigo. A noiva tinha ido passar férias à Islândia. Madalena, embora tenha arranjado uma amante islandesa, voltou disposta a casar-se em Setembro.

[– Hei lá! O que é isto? – o narrador é subitamente interrompida por Rodrigo, a personagem do conto, visivelmente agastado.

– Estás a falar de quê? – perguntei.

­– Da descrição que estás a fazer. Não me podias arranjar uma vida melhor? Primeiro nem gosto muito de ser publicitário, isso é uma mania tua, só porque tiveste esse desejo quando eras adolescente. Depois tinha de ser anónimo e pobrezinho, não era? Como tu. És um invejoso, é o que tu és. Faz-me rico, pá. Ou sentes-te ameaçado por uma personagem de um conto teu? Dá-me um CLK. Põe-me dinheiro nas mãos. Aposto que o utilizo bem melhor do que tu. E depois a namorada. “Uma amante islandesa”. Ao menos perguntavas-me se prefiro ser traído com um homem.

– Nem preciso, isso é uma prerrogativa do narrador – interrompi-o.

– Uma prerrogativa, o tanas! O Pérez-Reverte diz que as personagens têm uma vida própria. Ele não escolhe a vida delas. Cada uma…

– Ouve lá, isto não é um romance do Pérez-Reverte. É uma pequena estória para publicar num jornal. Tenho cá uma sorte com estes tipos dos contos – desabafei. – Por estas e por outras é que nunca escrevo ficção.

– Não escreves porque não sabes. Aquele princípio está todo errado. Pega no livro do David Lodge e vê lá no capítulo “Beginnings”. Vê se aprendes alguma coisa. E o meu nome, deixa-me que te diga…

– Tu és implicativo. Qual é o mal do teu nome?

– Foi escolhido ao acaso. Tu não tens jeito para isto, admite – retorquiu a personagem com um ar impecavelmente emproado.

– Eu não tenho é paciência para te aturar. Já vais ver o jeito que tenho.

Com as devidas desculpas, a narrativa prossegue de imediato.]

Rodrigo Palhotas, mau carácter e hipócrita, publicitário sem nenhuma imaginação, plagiador compulsivo, noivo de uma quarentona neurótica e ninfomaníaca, estava sentado numa esplanada a desenhar falos em guardanapos de café.

Sem que Rodrigo tivesse tempo para reagir, uma sonda espacial perdida da sua rota despenhou-se exactamente em cima da cabeça de Rodrigo. Foi um grande azar e uma enorme coincidência, como veio explicado depois na imprensa.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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“Pois, não tem mesmo jeito nenhum.” Por favor, continue.
 

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