Arquivo

Condenados

Corta!

Não precisamos recuar muitos anos para chegarmos a um tempo onde dois terços dos portugueses dificilmente saberiam explicar o que é isso de pedofilia. De um momento para o outro, no entanto, parece não se ouvir falar de outra coisa. Mas nem só por cá. O cinema, um pouco por todo o mundo, passou a incluir, de forma sistemática, nos últimos anos, este tema como hipótese para as suas ficções.

A estreia de Nicole Kassel, com O Condenado, é o último dessa lista. Um homem, condenado por molestar crianças, e preso 12 anos, é libertado e tudo faz para recomeçar uma nova vida. Seria fácil para Kassel, com uma história destas, tombar para o melodrama onde apenas existem maus de um lado e bons do outro. O melhor deste filme, no entanto, é nunca deixar que isso aconteça. O condenado, Walter, num papel seguro e sem brilhantismos desnecessários de Kevin Bacon, tenta a sua reintegração, procurando vencer os seus proibidos desejos. É nessa tentativa, muitas vezes no limite, que os melhores momentos do filme são atingidos. No resto do tempo, porém, há um vazio onde nada parece realmente acontecer. Um minimalismo estético acompanhado por uma narrativa sem floreados, que transforma este num filme que se vai vendo sem que disso se dê conta.

Uma vez mais as desigualdades. Os desequilíbrios. O retrato de uma sociedade onde a divisão dos bens, aos olhos de quem nada ou pouco tem, surge tão injusta. No iraniano Sangue e Ouro, ao realizador Jafar Panahi pouco interessam os motivos para tais diferenças. Para este, bastam dois ou três postais ilustrativos, banais e sem nada explicarem, para servirem de motivação e desculpa ao revoltado resultado final, que os mais fracos acabam sempre por cometer quando a esperança, última a morrer, acaba. Só que aqui essa esperança não termina por nunca ter começado. Num retrato do Irão que pretende ser um fiel retrato de todo o mundo, apenas o seu lado exótico o salva. Como cinema é fraco. Como manifesto politico é uma nulidade.

Na passada quinta-feira, no São Luiz, em Lisboa, falou-se de Cinema Português. Mais diversidade, mais dinheiro e uma maior aposta por parte das distribuidoras nos filmes nacionais. Foram estes os três aspectos mais referidos, nessa tarde, para uma possível salvação do cinema luso. Que o público está tão habituado à formatação do cinema americano que já nem consegue aceitar (entender?) qualquer outra linguagem cinematográfica, também se ouviu por ali dizer. Não é só o cinema português que está em crise. É todo o cinema que recuse a linguagem dominante. O cinema, como toda a arte, não deve ser algo formatado. A diferença não é uma obrigação, mas agradece-se. Felizmente, mesmo com o cinema americano a ocupar muito para além de 90 por cento dos ecrãs de exibição de cinema nacionais, existe um cinema diferente que resiste. Obviamente, aqui no Corta! não se é de opinião que todo o cinema americano é mau. Mas, muitos dos filmes que exporta, de tão fracos e sofríveis, ocupam de forma excessiva salas que poderiam ser ocupadas com uma outra qualquer cinematografia bem mais interessante.

Mas enquanto estas discussões se fazem, acaba de estrear um filme português que é a prova de que vale a pena continuar a lutar. Ainda que essa luta demore quase dois anos a estrear e que, quando finalmente o consegue, apenas o consiga numa única sala em todo o país, e talvez por muito pouco tempo, como o próprio realizador confessou ao Corta!. Com poucos meios, Antes que o Tempo Mude, de Luís Fonseca, é um grito de quem ainda acredita que o cinema deve ter algo a dizer. E que, quando a necessidade de o dizer existe realmente, não há barreiras que o possam impedir. Cinema sem formatações, de uma honestidade poucas vezes vistas, e de uma exposição de quem nele participou que pode chocar os mais habituados a filmes repletos de um excesso de maquilhagem que apenas serve para esconder o nada que têm para mostrar. Um dos acontecimentos do ano e uma oportunidade (rara no cinema) para conhecer a mais corajosa e carismática actriz portuguesa, de seu nome Mónica Calle.

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

Sobre o autor

Leave a Reply