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Como se utiliza a democracia

Crónica Política

Nunca me esqueci das palavras que ouvi de um membro do Governo Inglês que, como convidado, participou na abertura do 1º Congresso do CDS em 1975 no Palácio de Cristal, no Porto, referindo que a democracia inglesa, pese embora os seus duzentos anos, ainda tinha problemas, pelo que nós, portugueses, devíamos estar preparados para as muitas dificuldades que seguramente iríamos encontrar pela frente.

Confesso que na altura achei este discurso, para lá de pouco animador, porventura excessivo, pois sendo as regras democráticas simples e até naturais não via como nos fosse assim tão difícil construir e viver numa sociedade democrática com toda a normalidade.

A verdade é que logo nessa tarde o congresso foi sitiado por milhares de manifestantes de extrema-esquerda, arremessando-nos cocktails Molotov e pondo em grave risco a nossa integridade física.

Valeram-nos na altura os muitos convidados estrangeiros que pressionaram o então Presidente da República para garantir a nossa saída em segurança, altas horas da madrugada, depois do congresso ter sido suspenso.

Passados esses tempos de convulsões, a nossa sociedade entrou num caminho de progressiva estabilização em que o período dos governos provisórios e pouco estáveis deu lugar a governos maioritários, dispondo de tempo suficiente para promover as necessárias reformas.

Entrámos na Comunidade Europeia, aderimos à moeda única e tudo levava a crer que a nossa democracia estava já ao nível das melhores do mundo desenvolvido.

As instituições funcionavam regularmente e as reformas nos vários sectores, como a justiça, saúde e educação, iam ensaiando tímidos passos em que a controvérsia gerada à sua volta ia na razão inversa da respectiva eficácia.

As presentes crises com que actualmente nos confrontamos, a nossa e a que veio de fora, estão hoje, como é normal, a ser a nossa principal preocupação e a ser o grande desafio à nossa estrutura democrática.

A comunicação social tem vindo a trazer ao nosso conhecimento um sucessivo número de casos que, pela sua dimensão e personalidades alegadamente envolvidas, não podemos deixar de classificar de gravíssimos, sendo o contínuo detalhe das informações tornadas públicas um desafio cada vez maior à nossa capacidade de presunção de inocência.

A gravidade e dimensão dos casos e as ligações que entre eles envolvem personalidades políticas detentoras de grandes responsabilidades ou com elevada capacidade de influência, leva-nos à conclusão de que existe um “polvo” com tentáculos políticos nos partidos do chamado arco da governação, face ao qual a nossa democracia não tem qualquer espécie de controlo.

E agora percebe-se porque razão a nossa justiça é desprovida de meios e os processos dispõem de infindáveis mecanismos dilatórios.

Também se percebe que o combate à corrupção não apresente qualquer resultado, pois quando as “coisas” ficam feias há sempre um regime de prescrição criminal que chega a tempo e resolve tudo.

A isto assiste o simples cidadão, ouvindo diariamente as últimas notícias que os vários casos vão produzindo, como se de uma novela se tratasse, passando da indignação inicial à aceitação como normal.

É esta “normalidade” democrática que me parece constituir, hoje, o nosso grande perigo e que, como tal, importa persistir na sua denúncia sob pena de, não conseguindo viver como pensamos, acabarmos por pensar como vivemos.

Devo confessar que não tenho grandes esperanças que o nosso sistema democrático venha produzir grandes alterações que levem à moralização dos políticos e dos partidos.

Tão pouco acredito que as mensagens do senhor Presidente da República produzam qualquer efeito e que o seu empenho, como supremo responsável e garante da democracia, o leve a tê-la de forma empenhada neste padrão de qualidade.

Só me resta esperar que lá fora, noutros países, haja políticos e instituições, bem como nações mais civilizadas que sejam capazes de nos impor regras e condutas que eles fiscalizem, e por essa via, melhorarmos a qualidade do regime.

Só que nessa altura teremos que escrever Portugal com “p” pequeno.

Por: Álvaro Estêvão

* deputado pelo CDS-PP na Assembleia Municipal da Guarda

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