Arquivo

Como se joga o jogo europeu? (II)

Theatrum mundi

A crise da dívida que atravessa toda a Europa colocou nas mãos da Alemanha, e da senhora Merkel, o futuro da integração política do velho continente. Para fazer aprovar no Parlamento alemão o mega plano de resgate europeu de 750 mil milhões de euros, a chanceler alemã exigiu não só planos de austeridade credíveis aos países mediterrânicos mas, mais ainda, um verdadeiro contrato europeu de controlo das despesas dos estados que deve avançar para estabelecer maior competência comunitária sobre a política orçamental. Para dar o exemplo, a Alemanha limitou constitucionalmente a despesa pública, opção polémica e que não tem sido seguida, por razões óbvias. Por seu turno, muitos consideram que é na própria política económica da Alemanha que reside a chave para o fim da crise, designadamente no estímulo da procura interna que se traduza na redução do largo excedente da balança comercial alemã. Num momento de falta de liquidez interna de muitos países, do sector público mas também do privado, e de crescimento muito débil, a Alemanha tem a obrigação de funcionar como locomotora da Europa. Como sublinhou há poucos dias Rafael Poch, no artigo publicado no “La Vanguardia”, de Barcelona, “Merkel en busca de un éxito egoísta”, a despesa pública alemã tem vindo a diminuir desde os 50% (do PIB) em 1990 aos 44% actuais (assim sendo, o défice orçamental neste momento deve-se afinal, não à despesa pública excessiva mas aos cortes sucessivos dos impostos). O retrocesso dos salários reais na Alemanha desde a adopção do euro contrasta com o aumento dos mesmos em Portugal, Espanha e Grécia ao longo do seu trajecto de integração europeia, o que tem causado desequilíbrios evidentes no seio da União. Assim, se a crise da Europa radica, em parte, no facto de Portugal, Espanha e Grécia se terem habituado a viver acima das suas possibilidades, também se deve ao facto de os alemães se terem eles mesmos obrigado a viver abaixo das suas possibilidades.

Vista da ‘periferia’ da Europa, esta crise causa muitas perplexidades. A primeira delas tem que ver com o papel da Alemanha no seio da União, mas prolonga a sua sombra sobre a lógica das regras, normas e mecanismos de decisão em vigor no interior da mesma. Tomando o exemplo de Portugal. A integração assinada fez há pouco 25 anos, em 1985, provocou sem dúvida a modernização material do país e o aumento do nível de vida médio da sua população (a riqueza subiu dos 55% da média europeia – UE12 – em 1985 para 75% em 2000). Com a crise, porém, tornou-se mais evidente a outra cara da moeda, aquela que mostra que o tecido produtivo foi desmantelado, sobretudo no sector agrícola. Nos dias de hoje, o país importa 70% do que come, em grande parte devido à política agrícola comum (PAC) que subsidiou o abandono das terras agrícolas e estimulou a importação dos grandes beneficiários da PAC, a França sobretudo. A integração numa união aduaneira acelerou a importação das máquinas alemãs que, de acordo com a lógica da livre competição do mercado, foi tida como peça fundamental da paz democrática europeia. Acresce que a moeda única retirou competitividade à economia portuguesa – pela subida dos preços, pelo alto valor da cotação do euro e pelo fim da soberania cambial – restando ao país o endividamento para financiar a despesa. No sector privado, a lógica foi a mesma. A baixa constante das taxas de juro, desde meados dos anos 1990 até ao nível histórico de 1% actual, foi acompanhada de um política agressiva das instituições bancárias que concederam crédito em cima de crédito – para comprar casa, carro, electrodomésticos, férias, roupa – sem exigirem muitas garantias. A ordem foi a de comprar, os produtos alemães que construíram o excedente comercial da Alemanha e produziram o excedente financeiro aplicado na compra da dívida da Grécia, Espanha e Portugal, por exemplo. Para muitos, a exposição dos investidores alemães à dívida destes países foi mesmo o factor que determinou a resposta alemã à crise da dívida do Sul e o seu compromisso relutante com o mega fundo de resgate europeu. Como escreveu o conhecido historiador e publicista português Vasco Pulido Valente, num artigo do “Público”, de Lisboa, depois de vinte anos de fotos de família e de cegarrega da União, o mais real continuam a ser as grandes potências e os seus interesses, sempre prontos a pôr na ordem os mal comportados e desordeiros do Sul que gastam mais do que produzem e não se sabem governar. As visões cínicas do fenómeno europeu e da integração vão certamente crescer, alimentadas pela crise; e o pior é que alguma verdade há por detrás delas.

Por: Marcos Farias Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply