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Como se joga o jogo europeu? (I)

Theatrum mundi

A incredulidade europeia face à crise advém do facto de ela ser uma crise produzida no coração do sistema capitalista norte-americano e que contagiou a Europa ao ponto de estar a colocar em causa o seu modelo social, a coesão interna e o próprio futuro da integração regional no continente. Após esta crise – que, espante-se, Sarkozy descobriu que também é moral, após o descalabro francês no campeonato do mundo de futebol da África do Sul – o que ficará do estado de bem-estar e das leis de protecção do trabalho? O que ficará do estilo de vida europeu e da protecção da terceira idade? O que ficará da governação nacional e da democracia representativa parlamentar tradicional. Quando, dentro de uma década, as consequências mais profundas da crise – e dos seus remédios – puderem ser plenamente avaliadas e julgadas, que Europa terá sido entretanto produzida?

Durante algum tempo, persistiu a pretensão de que a crise europeia não passasse de uma tragédia grega, que não passasse do descalabro típico das contas dos países periféricos, sempre olhados com desconfiança pelas elites políticas e económicas do Norte europeu, uma tropa fandanga – no dizer de VPV – que não se sabe governar e tem de ser salva da bancarrota e posta na ordem uma e outra vez. Diz muito do espírito ‘europeu’ com que a crise foi abordada o cordão sanitário que depressa foi lançado em torno da Grécia. Mas na ânsia de que a situação da Grécia fosse individualizada pelas agências de notação e instituições internacionais, os dirigentes europeus – e pasme-se, a própria Comissão europeia – foram lançando a desconfiança sobre toda a Europa.

O diktat europeu que condena Portugal, Espanha e Grécia à austeridade transforma-os, muito por culpa própria, nessa tropa fandanga da zona euro – porque não perceberam as regras do jogo europeu, ou qual a margem de tolerância que tinham para o jogar – mas que também foi útil no enjeitar das responsabilidades de quem definiu as regras do jogo. Depois, como era inevitável, os cortes também chegaram ao centro da Europa. Até 2013, a Alemanha obrigou-se a poupar 80 mil milhões de euros, a França 40 mil milhões, o Reino Unidos acaba de aprovar um pacote que pretende vir a reduzir o défice dos 10,1% de 2010 para 1,1% entre 2015 e 2016. Não nos enganemos; muita da despesa do estado europeu é inútil e perde-se no desperdício de uma máquina burocrática pouco habituada a prestar verdadeiras contas aos cidadãos. Outra parte importante da despesa é gasta na cooptação de funcionários públicos, um instrumento vital na estratégia de manutenção do poder por parte do partido político que o exerce. No desenrolar da crise, é preciso ser justo e não confundir os riscos de colapso do modelo social europeu com as oportunidades que se abrem de reforma profunda do estado. Eu diria que é um problema de metodologia e de soberania. Se esta palavra ainda significa alguma coisa na Europa, significa certamente a capacidade de escolher a forma como se joga o jogo europeu.

O mais revelador é a erosão adicional da soberania da Grécia, Portugal e Espanha. Antes de mais, porque caíram no erro histórico de gastar muito mais do que a riqueza que são capazes de produzir e confiaram na quimera do dinheiro barato. Depois, e por causa do avolumar da dívida, perderam a capacidade para decidir quando e como pôr em prática o seu plano de ajustamento. As pressões de Obama e do Conselho Europeu de 6 de Maio sobre Zapatero e Sócrates mostraram a verdadeira natureza de uma decisão que ambos recusaram tomar até à última hora. Finalmente, o compromisso em torno do mega fundo de resgate europeu acabou por transformou a Grécia, Portugal e Espanha nessa categoria de países potencialmente resgatáveis que se arriscam a perder estatuto e poder como, por exemplo, o direito de voto nas instituições europeias.

Dentro de uma década, as consequências para a integração europeia já poderão ser avaliadas e deverão ter passado por um reforço considerável da governação económica. Muitos vociferam que um espaço dotado de moeda única não pode sobreviver sem política económica integrada, e a fiscalização apertada dos orçamentos nacionais está na agenda das negociações. As reacções são díspares, e embora muitas vozes deplorem o défice de Europa e reclamem mais Europa contra a crise, a fiscalização do orçamento por Bruxelas é um aspecto simbolicamente muito marcante no caminho para a federação, pelo que muitos governantes se pronunciaram já contra esta opção. A questão é a de saber se têm de facto opção, ou se os discursos indignados contra a limitação da soberania orçamental se dirigem exclusivamente para as audiências internas, prontas a culpar ‘Bruxelas’. Por muito que se oponham, o facto é que esta crise da dívida que atravessa toda a Europa colocou nas mãos da Alemanha, e da senhora Merkel, o futuro da integração do continente.

Por: Marcos Farias Ferreira

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