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Comemorar abril

Que sentido terá, ou melhor, que sentido deverá ter comemorar o 25 de Abril trinta anos depois daquela “(…) madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitámos a substância do tempo.”? (Sophia de Mello Breyner Andresen).

O que distinguirá o 25 de Abril de outros acontecimentos marcantes da Historia de Portugal, que o calendário oficial regista e celebra anualmente, numa rotina que quase nada já diz ao povo português? Porque não aconteceu ainda ao 25 de Abril o mesmo que ao 10 de Junho, 5 de Outubro e 1 º de Dezembro?

A resposta a estas questões remete, indiscutivelmente, para a circunstância de o 25 de Abril ser ainda para os portugueses “um acontecimento próximo e íntimo”, um evento que contém uma história que é de todos nós, e não de um qualquer partido político ou de alguém em especial, e uma realidade que continua a ser um quotidiano de democracia para os portugueses.

Só isso continua hoje a dar sentido às comemorações de Abril. Um Abril que foi, simultaneamente, um ponto final num regime ditatorial e um ponto de partida para um futuro em democracia; um ponto final numa guerra colonial de treze anos e um ponto de partida para uma mesma comunidade lusófona de oito povos e oito nações independentes; um ponto final num passado de subdesenvolvimento económico e um ponto de partida para um progresso sustentado e solidário; um ponto final numa história de desencontros e um ponto de partida para o reencontro dos portugueses consigo mesmos, com a Europa e com o mundo; enfim, um ponto final na usurpação da cidadania e um ponto de partida para futuros melhores em autêntica liberdade.

Celebrar Abril jamais poderá ser transformar aquilo que foi um “um lindo sonho pra viver” num ritual comemorativista que, a pretexto da evocação da efeméride, mais não pretenda se não a apropriação político-partidária da sua memória colectiva com vista a “ideológicas projecções do presente” ou, quando não mesmo, promover o “restauracionismo ideológico” e remeter o 25 de Abril à condição de simples feriado nacional, “o melhor modo de fazer esquecer o que é importante”.

O combate a tais objectivos terá de continuar a passar pela exaltação dos autênticos ideais de Abril e do protagonista principal desse momento alto da história nacional e seu único herói colectivo: o Povo, o Povo real e concreto, não o povo mítico, em unidade com o Movimento das Forças Armadas. Como defendia Sampaio Bruno no dealbar do século passado, “dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é mesmo um povo. É o Homem”.

A presença de militares de Abril nas suas sucessivas efemérides comemorativas, jamais poderá ser interpretada como pretexto para recolherem quiméricas homenagens que então recusaram, mas antes para significar a proximidade e a continuidade de Abril, para demonstrar a sua firmeza na fidelidade aos ideais que os moveram, para evidenciar a sua constância na identificação com sentir profundo do Povo português e, sobretudo, para emprestar às comemorações uma maior elaboração mítica e simbólica enquanto “força dinâmica de transformação, de sonho, portanto, de utopia”, dando testemunho pessoal disso mesmo às novas gerações.

Comemorar Abril hoje terá de continuar a ser viver Abril no quotidiano e na pureza dos seus valores legitimadores, fazendo deles os pilares de um “eterno futuro” onde nunca mais a chama da liberdade se volte a apagar. Homenagear Abril hoje terá de continuar a ser aprofundar Abril na discussão conjunta e plural dos principais problemas que se colocam à sociedade portuguesa e no diálogo profundo e tolerante entre as diversas forças políticas, sociais e culturais. Enfim, evocar Abril hoje terá continuar a ser realizar Abril no dia-a-dia, fazer da liberdade uma festa permanente de cidadania e promover uma democracia mais social, mais solidária, mais fraterna e mais coesa.

E reconheçamos que ainda há muito a fazer para cumprir Abril: que, apesar do regime democrático representativo se encontrar institucionalizado, existe um elevado défice de participação cívica e uma grande distância entre representantes e representados; que, apesar de o poder local haver sido uma das maiores conquistas de Abril, ressurgem casos preocupantes de um novo “caciquismo” e persistem profundas assimetrias regionais entre o litoral e o interior e entre a capital e a “província” e grandes distanciamentos entre o poder central e o poder local; que, apesar do fim da guerra colonial, Portugal encontra-se hoje de novo envolvido numa guerra neocolonialista, ao serviço de desígnios imperiais da hiperpotência mundial; que, apesar da independência da ex-colónias, subsistem preconceitos e traumas de um imaginário império que nos fez pensar “que éramos maiores do que somos”, que condicionam o aprofundamento de relações recíprocas sólidas entre Portugal e os novos países; que, apesar do enorme surto de progresso nos últimos trinta anos, Portugal continua na cauda da União Europeia em tudo quanto respeita a factores positivos de desenvolvimento; que, apesar do acentuado crescimento económico neste mesmo período, tem-se assistido nos últimos anos à deterioração dos direitos sociais à saúde, educação e segurança social conquistados pelo 25 de Abril.

Mas que seria de Portugal e dos portugueses se não tivesse existido o 25 de Abril?

O 25 de Abril cumpriu as suas promessas fundamentais, de democratização, de descolonização e de desenvolvimento. Com todas as dificuldades, limitações e contrariedades, qualquer balanço sério e isento não pode deixar de evidenciar um claro progresso, quantitativo e qualitativo, para o país e os portugueses, visível, nomeadamente, na educação e ensino (redução da taxa de analfabetismo de 25 % para 9 %, aumento de 93 % no acesso ao ensino secundário e 127 % ao ensino superior) – embora ainda longe dos níveis europeus – na saúde e assistência (redução de cerca de 80% na taxa de mortalidade infantil e aumento aproximado de 10 anos na esperança média de vida à nascença) na infra-estruturação básica de água, esgotos e electricidade (que se aproxima dos 100%), na aquisição de casa própria (cerca 80% do total de alojamentos), na rede auto-estradas (de 80 km para 1800 Km) e nos comportamentos indiscutivelmente mais modernos e emancipados da população.

Perante a demagogia e a desinformação, celebrar Abril hoje terá de continuar a ser, também, fazer “a pedagogia do país que mudou, do país que nunca poderia ser o que hoje é, se tivesse continuado enclausurado na redoma bafienta do salazarismo, mesmo que sem Salazar”, como preconiza José Manuel Fernandes. É urgente recordar aos jovens, continuando a citar o mesmo autor, “como era o país no tempo em que o divórcio era proibido, uma simples reunião de estudantes podia terminar na prisão, a mulher precisava de autorização do marido para se ausentar para o estrangeiro, os jovens tinham de ir combater numa guerra injusta, as empresas só medravam com autorização do Estado, a censura fazia lei, se fazia fila para comprar leite, as barracas entravam pelas cidades dentro, a greve era proibida e o país vivia de costas voltadas para a Europa e para o mundo”.

Comemorar Abril terá de continuar ser “manter o 25 de Abril entre nós, como um acontecimento próximo e íntimo” e, sobretudo, entre os jovens, fazendo-os aprender o que custou a democracia, que o 25 de Abril não foi o resultado de um acaso da história, de uma normal evolução de regime, nem um produto de geração espontânea ou uma acção conjuntural exclusiva de jovens capitães “irreverentes, generosos e românticos”, simplesmente interessados em pôr fim a uma guerra interminável e sem sentido, e quanto importante foi para eles o 25 de Abril como “explosão de futuros possíveis” e diferentes, pois sem ele não teria havido a liberdade e o progresso de que hoje desfrutam.

Celebrar Abril deverá ser, ainda, lutar pela paz, lutar de forma assumidamente positiva, normativa e transformadora por uma paz ampla e plural, alternativa não só à guerra e ao terrorismo mas também a toda as outras formas de violência física, social e cultural.

Perder a memória de Abril será cortar as raízes ao Portugal livre e democrático que então renasceu, será esquecer o seu percurso histórico e os ideais que lhe deram força, será abrir caminho ao populismo, “uma forma de fascismo «light» – segundo António Pinto Ribeiro – manipulando a ideia de que a democracia é coisa acabada”.

Perante algumas nuvens que aparecem a querer encobrir de novo o Sol da liberdade, é fundamental despertar nas novas gerações a esperança no futuro de Portugal, “aberto à Europa e ao Mundo, mas guardando a sua identidade e independência, que a República sempre encarnou e encarnará”, citando José Augusto Seabra. Para isso, é fundamental que elas conheçam e cultivem a exemplaridade cívica e patriótica daqueles que fizeram do amor à liberdade a principal causa da sua vida, para que compreendam que o regime democrático em que vivem não é uma característica natural das sociedades, um sistema político acabado, nem mesmo, quiçá, um dado definitivamente adquirido. Que, pelo contrário, a democracia é um regime sempre incompleto, em contínuo e necessário aperfeiçoamento, exigindo para tal um permanente empenhamento cívico e uma constante atitude cultural dos cidadãos para o aprofundamento dos seus valores e ideias. Só nesta perspectiva cívico-pedagógica a memória do passado pode adquirir significado no presente e sentido no futuro.

A cada um de nós impende a radical responsabilidade de guardar essa memória histórica colectiva e democrática a que queremos continuar fiéis e às novas gerações a tarefa de reinventar continuamente a democracia, para que jamais alguém volte a cortar a raiz ao pensamento, para que o sonho possa continuar a comandar a vida, para que o real se aproxime cada vez mais do ideal e para que Portugal e os portugueses possam ter futuro em liberdade. “Um povo que não sabe a sua história não existe”.

A cidadania activa, participativa e exigente, a democracia social, solidária e inclusiva, a Europa, a Lusofonia, a abertura ao Mundo e a Paz, no respeito pela igualdade e pela diferença, são hoje os novos desafios de Abril.

Por: Augusto José Monteiro Valente

Major-General – “capitão de Abril”

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