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Coisas…

Enquanto com a língua libertava um pequeno naco de carne de porco do espaço entre o incisivo e o canino…

Aqui há uns dias entrei num café em Coimbra a fim de comprar cigarros (péssimo gesto, eu sei, não vale a pena protestarem). Por trás do balcão, um casal jantava tranquilamente sentado a uma mesa onde se podia ver um tacho, dois pratos, dois copos e os talheres. À direita, uma televisão com ecrã gigante debitava muitos decibéis de sotaque brasileiro. Um pouco constrangido por ter interrompido um momento tão doméstico, aguardei que o representante masculino do casal engolisse a última garfada da feijoada que espreitava do tacho e, sem se levantar, me perguntasse surpreendido o que é que eu queria. Assim mesmo: “O que é que quer?”. Resisti à tentação de lhe responder que só queria era não ter entrado ali e lá balbuciei qualquer coisa como “um SG destes e um dos outros”. Enquanto com a língua libertava um pequeno naco de carne de porco do espaço entre o incisivo e o canino (com o característico estalido a acompanhar), o patrão esticou o pescoço e lá me conseguiu dizer que “SG dos outros não há”. Presumi que, não havendo dos outros, tivesse perdido o direito de comprar um destes. Quando dei por ela, já ia outro carregamento de feijões a caminho da boca do homem. Burro, ainda consegui agradecer (imaginem) num gesto quase automático e lá virei costas acabando com a minha inadmissível intromissão na janta do dono do café e consorte. Chegado ao carro, onde me esperava o resto da família, lá tive que explicar o insucesso da minha missão.

A leve náusea que me acompanhou nos minutos seguintes levou-me a meditar seriamente sobre o nível de profissionalismo que se pratica no nosso Portugal. Todos sabemos que a estória que contei, longe de constituir uma excepção, é regra neste pobre país.

No entanto, e é aqui que quero chegar, quando esse mesmo dono de café é obrigado a recorrer a um qualquer hospital público, a probabilidade de ser atendido por um amador mascando o seu almoço, palitando os dentes e acrescentando “aqui não tratamos doenças dessas”, é nula. Com toda a certeza, o dono do café que não me vendeu o tabaco por se encontrar em plena refeição familiar, será atendido por um médico ou enfermeiro que, para além de estar profissionalmente habilitado e encartado para o que faz, já terá resolvido o seu problema de fome ou irá resolvê-lo mais tarde, não estará a palitar os dentes com a língua e, ao contrário do que pensa o senhor ministro da saúde (o tal que parte cadeiras em hospitais de província), lavou de certeza as mãos antes de lhe tocar.

Talvez não fosse má ideia pensarmos todos um pouco nisto de cada vez que formos postos à prova durante este Verão, neste país de amadores.

Por: António Matos Godinho

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