Arquivo

Coisas

Primeiro dia de férias. Partida para o Algarve. Às nove da manhã alça da cama e, cumpridas as formalidades higiénicas, começa a obedecer a ordens.

Sobe a uma cadeira e retira várias malas e sacos que repousavam havia já uns meses no fundo do roupeiro. O equilíbrio é precário mas as orientações vindas de baixo são implacáveis. Aproveita a fase criativa de acondicionamento das roupas nas malas para descer à garagem e começar a preparar a viatura: retira inutilidades diversas dos bancos de trás, verifica o nível de gasolina e prepara-se para decifrar o enigma da colocação dos suportes das bicicletas no tejadilho. Meia hora depois, já farto de Algarve, volta para cima onde é esperado por mais uma série de instruções a cumprir. É tempo de acordar os miúdos e a tarefa cabe-lhe a ele, evidentemente.

-“Arranja lá o pequeno-almoço. Vê se fazes alguma coisa.” Com a orelha murcha e o rabo entre as pernas lá vai para a cozinha preparar a comidinha para suas excelências que vão soltando os últimos bocejos na cama.

Saciados os meninos e lavada a loiça, é convidado a transportar volumes pesados para o carro. Tarefa de homem, recordam-lhe. Antes, porém, lembra-se subitamente de que havia que preparar a inevitável máquina de filmar e verificar se a fotográfica tem rolo. A garota pergunta se pode levar a playstation ao que responde que não. “Mas a Mãe deixa!” Então se a Mãe deixa por que é que lhe pedem opinião? Percebe logo que quem tem que o preparar, é ele. Tarefa de homem, naturalmente.

Carregado de sacos e malas, prepara-se para transpor a porta de casa em direcção ao automóvel quando tropeça num par de patins, pisa uma boneca e quase aterra em cima de um saco de toilette cuidadosamente colocados em lista de espera no chão do corredor. Equilibra-se à terceira tentativa e, sem ter tempo de recuperar do susto, ouve a recriminação: “Vê lá onde pões os pés!”

Olha com orgulho para a mala do carro onde acaba de operar um autêntico milagre de ocupação de espaços, quando vê chegar três animadas criaturas, cada uma delas com seu volume debaixo do braço. Resiste ao enfarte do miocárdio e tenta o impossível que é encaixar os volumes num espaço igual a zero que é o que resta. Ouve então a voz decidida e sabedora: “Não percebes nada disso; tira tudo que eu arrumo.” Respira fundo três vezes e pensa na Pátria, como fazia a Rainha Vitória durante as visitas nocturnas do marido. Cumpre a ordem e despeja a mala do carro.

Com bagagem e ocupantes devidamente acondicionados liga a ignição e engata a primeira. Mas, ainda não é desta.

“Papá, quero fazer xixi.” Antes sequer que tivesse tempo de se suicidar com uma trombose, recebe instruções: “Vai lá com a miúda que eu não posso fazer tudo.”

Por: António Matos Godinho

Sobre o autor

Leave a Reply