Arquivo

Codificar e normalizar

Bilhete Postal

O tempo é dos criadores de padrões numéricos e do mundo das conclusões a partir dos dados registados. Eu alinho nisto e dei comigo a codificar. Na saúde, que domino melhor, há uns números que representam ações. A ADSE tem uma terminologia típica e, portanto, constrói números que significam procedimentos: 39.11.00.13 Incisão de trombose hemorroidária. 35.03.03.10 Laqueação da crossa da veia safena interna ou externa. Estes números são importantes porque geram os pagamentos através de uma contabilística não rígida. O mesmo já não é para o Estado que utiliza outros valores e maior rigor através das portarias que os definem. Em SIGIC (vulgo listas de espera operadas com apoio de horas extra ou privados) os ganhos são semelhantes para todos consoante as patologias.

Herdámos isto dos Estados Unidos com a importação do ICD 9 e agora do ICD 10. São novamente códigos onde números cristalizam gestos e outros números referem diagnósticos. Um doente tem vários códigos pois tem uma hérnia 550.90, mas tem também diabetes 249 e depois se é obeso 278 ou fumador V15.82. O procedimento é a correção da hérnia com prótese 53.04. Este médico é codificado com número mecanográfico, por exemplo, o 1608 do CHC e está numerado na Ordem com o 31610/C. Podemos saber se o 1608 fez o procedimento 53.04 trinta vezes. Estes números estendem-se a múltiplos atos médicos e técnicos. Administrar soro é o Z99100, colocar oxigénio em máscara é Z99030. Ou seja, estamos no território da análise numérica da coisa mais emocional do mundo que é a doença. O percurso dos profissionais e dos doentes está completamente dependente destas numerações que vão gerar dinheiro, pois a tradução deles é feita na plataforma onde somamos os consumíveis, os funcionários necessários, os tempos gastos e os atos realizados. Esta construção permite hoje ter registos informatizados de tudo. Somos iguaizinhos ao perfeccionista McDonald’s que tem os mesmos modelos e sistemas em todos os restaurantes. A ideia do tratamento oncológico é já a mesma com grupos de decisão terapêutica e de orientação e protocolos fixos para as patologias estadiadas e definidas de modo exato por todo o lado e todo o mundo. Houve melhoria? Claro. Tratamos hoje melhor e mais pessoas por dia. Para lá de tudo isto introduziram-se regras de biometria para controlo dos funcionários e depois marcaram-se consultas com horas definidas. Padronizamos comportamentos e gestos. Ser chefe ou diretor deixou de ter a importância do exemplo e o ministério de influência, pois as biometrias e a utilização de registos e assinaturas digitais, bem como a padronização do horário, balizam os funcionários. Eles cumprem esta eficiência sem olhar nunca para as variações ou as surpresas. O 1608 opera hoje cinco 53.04 e verifica 10 doentes em consulta introduzindo em lista de espera mais dois 38.09 e um 233.1 e um 246.2. Para confirmar que não sai para ir ao café, o melhor será mesmo filmar os corredores e zonas adjacentes. O doente cumpre o protocolo de check list para estadiar e classificar e depois segue a pathway com vista à alta, também cumprido as recomendações codificadas. O 1608 compete agora com o desemprego de milhares de jovens médicos que o substituirão por um preço muito inferior. Os custos da normalização em embalagens e datas de validade, e funcionários para verificar os números, é cada vez maior. Infelizmente o mundo caminha em continuas demandas de exagero e depois ruturas. Corremos de modo acelerado e cego contra a parede que nós próprios erguemos de modo fanatizado. Há uma quebra na boa fé, na confiança e depois as regressões são abruptas, umas vezes porque não há capacidade financeira, outras porque esgotamos as pessoas com exigências. Eu já não codifico mais.

Por: Diogo Cabrita

Sobre o autor

Leave a Reply