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Ceguinhos, visionários e videntes

Tresler

1. Quatro dias depois das eleições, parece que ninguém à nossa volta fala de eleições e das suas opções, entre vizinhos, nos locais de trabalho, no café. Envergonhamo-nos da política, temos medo de tomar partido, transformamos a aversão em indiferença por receio da confrontação. E falamos “deles” (os políticos) para não distinguir e afirmar as nossas ideias e nos protegermos atrás de um “nós”. Este enquistamento do sistema democrático tem sequência nas milhentas queixas e lamúrias nas redes sociais, lugares de perfeição onde a “cidadania” vem chorar as suas impotências. É aí que se lavam as (des)culpas e se arranjam justificações para não ter ido votar, para não nos dispormos a participar e transformar as estruturas existentes, para os dois partidos principais não se quererem entender, para “eles” serem “todos iguais” (porque “nós” somos sempre superiores).

Gostaríamos era de ser videntes, de ultrapassar as fronteiras físicas para ver o que o outro fez no boletim de voto. Melhor ainda seria ver dentro do pensamento dos outros. Aquele vizinho do 3º esquerdo, sempre a barafustar contra a vida, terá votado? E a reformada do rés-do-chão manteve a votação que lhe conheço da eleição de há 4 anos sabendo que perdeu muito rendimento? E o grupo de estudantes do 5º direito, já em idade de votar, teve ou não pachorra para ir fazer uma cruzinha num papel? E aquela irreverência da solitária chique do 2º esquerdo corresponderia afinal a um voto conservador? Mas ainda não há videntes a “transmitir” os votos dos vizinhos. Maldição!

2.A literatura, essa sim, gosta de videntes e visionários. Quanto aos visionários, a palavra na política oscila entre o encomiástico e o pejorativo, sendo que a capacidade de visionar e desenhar futuros risonhos, amanhãs que cantam, sempre foi nesta área fonte de grandes entusiasmos e a seguir causa de grandes desilusões. Mas nada como as ilusões, diz Agustina Bessa-Luís, para pacificar os povos. Do mesmo modo a literatura sempre premiou e endeusou os visionários e os heróis capazes de sacrificar o corpo e a vida em nome de algo de superior, que não viam mas em que acreditavam.

Quanto aos videntes, eles são também na literatura heróis de corpo inteiro, mas mal vistos de um modo geral, aparecendo aparentados aos bruxos. Os tempos atuais continuam a ser tempos de “realismo fantástico”, em que já não nos chegam heróis de carne e osso e de armas na mão. Queremos homens-heróis e, se possível, com poderes extraordinários. No “Memorial do Convento”, Blimunda, ao ver o interior das pessoas e as suas “vontades”, é a personagem que foge à norma, que sente a cada momento o perigo de ultrapassar a fronteira da normalidade e passar a “bruxa” ou “feiticeira”, como a sua mãe, condenada a um degredo em Angola. Mas a esse perigo diz “não”, não desiste de ser ela, de afirmar a sua pessoa contra a norma, mesmo quando sente a seu lado a desconfiança e a ameaça do auto-de-fé e da fogueira, com o povo ululante à espreita do espetáculo redentor.

Hélia Correia, recente Prémio Camões, lembrou-se também de criar num maravilhoso romance a figura de uma vidente situada num tempo logo a seguir ao do Memorial. Ela chama-se “Lillias Fraser” (romance com o mesmo título), vem da Escócia e escapou à batalha de Culloden, em que os britânicos esmagaram traumaticamente os escoceses. Lillias não vê o interior das pessoas, como Blimunda, vê nas pessoas a morte quando ela se aproxima. O poder de Lillias é o fruto da sua fuga precipitada à batalha, do seu acolhimento em casa inimiga mas também do abandono e desprezo a que foi votada em cada passo do seu trajeto. Veio para Lisboa onde os ingleses eram comunidade forte mas é apanhada pelo terramoto de 1755, que adivinha algumas horas antes de a terra se revoltar. É num ambiente de miséria física e moral, preconceitos e crueldade que ela se vai adaptando. No final, a obra apresenta mesmo o encontro entre Blimunda e Lillias, esta a encontrar finalmente uma mãe de verdade em que se possa encostar e repousar.

3.Estas duas histórias de videntes vão revelando uma mesma época, o séc. XVIII, que à luz das ideias atuais poderemos considerar dominado pelo pior despotismo e por um misto de conformismo desconfiado e submissão às instituições sagradas, Corte e Igreja, Polícia e Inquisição. Por todo o sítio paira o medo, a violência da denúncia, o truque do aproveitamento para a burla ou a trafulhice mesmo à custa da vida. Na obra de Hélia Correia é mais clara ainda a pequenez do português que quer agradar aos estrangeiros mas aceita mansamente as desigualdades e a miséria enquanto marca lugar para as próximas execuções na praça pública. O narrador de “Lillias Fraser” diz que a paisagem portuguesa fazia aos naturais e aos visitantes um “convite à fraudulência”. Quanto aos estrangeiros, “à procura de um País de Luzes”, chegavam e viam o sol e acabavam por aceitar afinal que este “convidava à imobilidade e não contrariava a escuridão”.

(José Saramago, Memorial do Convento, 1982; Hélia Correia, Lillias Fraser, 2001)

Por: Joaquim Igreja

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