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Carta aberta de uma lagartixa de montanha ao director do PNSE

Antes de mais, permita que me apresente, pois decerto já se terá esquecido de mim e da minha espécie. Sou uma lagartixa de Montanha a que, pomposamente, os zoólogos chamaram de Lacerta monticola. Há muitos milhares de anos que habito na Serra da Estrela e não me encontram em nenhum outro local do país.

Mas não é para falar de mim que escrevo, o motivo é somente o esclarecimento de uma dúvida que ultimamente se instalou entre os seres que conseguiram sobreviver ao grande incêndio que assolou o Vale Glaciar. Antigamente, quando havia dúvidas recorria às espécies que há mais tempo habitavam a nossa serra, como as bétulas que aqui se refugiaram após a última glaciação, mas infelizmente as raízes não as deixaram fugir e desfizeram-se em cinzas à nossa frente. Igual sorte tiveram os aristocráticos teixos que aqui tinham o seu último reduto. Os meus companheiros de grande altitude, o sábio mocho-real voou para longe, a gralha de bico vermelho ficou destroçada quando viu desaparecer o local onde criava os seus filhotes, provavelmente não os tornarei a ver, tal como aconteceu com a águia real.

Bem, mas eu quero continuar a viver aqui, apesar do fogo ter despido a terra do verde, deixando-a preta e triste. Já nem as minhas queridas rochas são o que eram. Os líquenes morreram e nas fendas já não florescem as exuberantes argençanas, mas talvez me adapte até nova catástrofe. Até das ovelhas já sinto falta, pelo menos quando vieram os primeiros pastores estes apenas faziam pequenas queimadas e, entre cervunais e arrelvados, sempre iam florescendo a orvalhinha e a campânula dos Hermínios.

Contudo, voltando ao motivo que me levou a escrever esta carta e como já o referi atrás, temos uma dúvida que gostaríamos de ver esclarecida. Sabemos que vivemos num parque natural, mas não sabemos para que serve um parque natural. Não sabemos para que servem os guardas e os técnicos se vemos o nosso meio arder como qualquer outro. Não sabemos para que servem as acções de sensibilização e divulgação se o lixo continua espalhado por todo o lado. De que vale viver num parque se aqueles que nos visitam não são capazes de nos conhecer e respeitar.

É esta a dúvida que gostaríamos de ver esclarecida, pois sonhamos em correr novamente entre os verdes zimbrais, de ver chegar anualmente centenas de espécies de aves ou de ouvir as rãs e as relas. Mas também de ver a explosão cromática dos urgeirais e piornais em flor, de ouvir os chocalhos das ovelhas e não sabemos se tudo isto é possível num parque natural e num local que reclamava ser património da humanidade.

Sem outro assunto de momento, apresento os melhores cumprimentos. Atenciosamente,

Lagartixa de montanha

Por: Telma Madaleno

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