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Carta aberta ao Embaixador Português no Congo

Pois, Pois

Na sua última carta, pedia-me V. Exa. uma explicação para a situação catastrófica em que se encontra Portugal neste ano de 2010. Perguntava V. Exa.: como é que um país que teve um desenvolvimento sustentado desde os anos 60 do século passado até ao início deste século entrou nos últimos anos em completo caos. E acrescentava ainda que há 10 anos nós, os portugueses, lhe parecíamos um povo quase civilizado e quase europeu e que agora nota em nós o regresso a sentimentos bárbaros e primitivos. A explicação deste fenómeno não é unânime. Dou-lhe a minha.

Tudo começou em Junho de 2002, quando o Governo aprovou um projecto de descentralização que previa a criação de comunidades urbanas e áreas metropolitanas. Como sabe, há muito tempo que a alta inteligência indígena clamava pela regionalização. Algo que, nas suas mentes brilhantes, era absolutamente indispensável ao desenvolvimento e à prosperidade da nação. E o Governo, com chantagens baratas e má-fé, lá conseguiu avançar com a coisa em Abril de 2004. A vontade do povo foi completamente ignorada. Muitos municípios até nem gostavam nada da ideia. Mas como o Governo lhes pediu para se associarem conforme bem entendessem, muitos tiveram medo de ficar isolados e de perder fundos comunitários. Assim, à pressa, sem discussão e análises sérias, a coisa lá avançou aos solavancos. Nasceram mais de 20 comunidades e sete áreas metropolitanas, formadas às três pancadas.

Logo em Abril de 2004, começou a instalar-se o pânico no Governo. Não havia retaguarda técnica para as Juntas Executivas. Não havia dinheiro. O primeiro problema resolveu-se facilmente: foram criados milhares de tachos por esse país fora e, passadas semanas, as Juntas já estavam completamente preenchidas com pessoal altamente competente. Isto segundo as palavras de Miguel Relvas, o então secretário de Estado da Administração Local e autor do projecto. O problema era mesmo o dinheiro. Os municípios, obviamente, não abdicavam das suas receitas. Pelo contrário: achavam-nas insuficientes. O défice público, que neste momento já vai em 15% do PIB, começou a crescer de forma assustadora. E a dívida pública corresponde, actualmente, a 200% do PIB.

As Juntas, como não eram eleitas pelo povo, não conseguiam impor os seus projectos às autarquias por falta de legitimidade política. Para ultrapassar este impasse, Miguel Relvas, tal como tinha admitido em 2003, propôs a realização de eleições para estes órgãos. Estava finalmente criada a regionalização. Mas, fatalmente, surgiram outros problemas.

Como muita gente avisara, as Juntas Executivas regionais entraram simultaneamente em conflito com o Governo e com as autarquias. Por um lado, queixavam-se do centralismo do Governo e, por outro, do excesso de autonomia das Câmaras. Queriam livrar-se dos poderes de cima e acabar com os de baixo. Passado pouco tempo, o emaranhado de influências políticas e burocráticas paralisou o país. O investimento atingiu mínimos históricos e a taxa de desemprego chegou aos 20%. Nada disto impediu que as Juntas continuassem a empregar mais e mais funcionários, supostamente imprescindíveis à glória da pátria.

O Governo nacional deixou de governar. O mínimo despacho de um Ministério levanta logo as vozes das regiões que se consideram prejudicadas e injustiçadas e, muitas vezes, provoca guerras entre regiões.

Os conflitos civis não param. Ainda no fim-de-semana passado, um jogo de futebol, em Viseu, entre o Académico e o Sporting da Covilhã provocou enormes tumultos. Houve três mortes, dezenas feridos e várias lojas e carros foram incendiados.

O Presidente da República, Santana Lopes, tentou, uma vez mais, serenar os ânimos. Pediu mais optimismo e uma nova atitude aos portugueses – ele bem dizia, em Janeiro de 2004, no lançamento de um livro, que sentia que vinha aí um tempo novo. Acertou em cheio. Infelizmente, as palavras do Presidente foram mal interpretadas. Fernando Ruas e Carlos Pinto, presidentes das respectivas Juntas, consideraram-nas ofensivas às justas reivindicações dos seus conterrâneos. Ambos o apelidaram de traidor e garantiram que não o apoiarão nas próximas eleições presidenciais.

O governo nacional, uma coligação entre o PS e o Bloco de Esquerda, está em estado de choque. O primeiro-ministro, António Costa, exclamou que se está a cagar para tudo isto. Francisco Louçã, ministro das Finanças, anunciou a venda do Terreiro do Paço a empresários espanhóis para poder pagar os juros da dívida pública.

Entretanto, caravanas de todo o país (tractores, carros, carroças, bicicletas e camiões TIR) dirigem-se neste momento para a capital. O objectivo é exigir mais dinheiro ao Governo e, de caminho, queimar o Terreiro do Paço e limpar o sebo a todos os espanhóis que encontrarem pelo caminho.

As últimas sondagens dão maioria absoluta a um partido de extrema-direita. Milhões de portugueses suspiram de saudades por Salazar. Alguém tem que pôr ordem nisto, já nem 30 Salazares conseguem endireitar esta porcaria, diz-se por aí à boca cheia.

Como seria de esperar, Portugal foi expulso da União Europeia por não cumprir os critérios orçamentais. António Vitorino, presidente da Comissão, disse que Portugal é uma vergonha para toda a Europa e o primeiro-ministro marroquino considera que o nosso país não é digno de pertencer a esse grupo de países civilizados.

Eu, enquanto escrevo estas linhas, estou no aeroporto à espera de um avião para me pirar daqui para fora. Por falar em pirar, Miguel Relvas desapareceu do país há meses e ninguém sabe dele.

Por: José Carlos Alexandre

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