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Carlos Adaixo

O que é próprio dos grandes espíritos é uma tão estreme quanto possível atenção ao seu tempo, ao mundo que os rodeia, o que, potencialmente e desde logo, é sinónimo de uma fina interpretação e de prospectivas propostas.

A pintura de Adaixo é um libelo contra este conturbado, aporético mundo, panorama, que, ao pôr -nos questões tão prementes, requer de nós uma firme, clara, definição de atitude.

Este tempo não surgiu de geração espontânea. Mais. Como foi possível que as catedrais se tivessem tornado em inacabamentos? (É um dos títulos presentes, Catedrais Inacabadas). As ogivas transmutaram-se em torres de habitação, não apenas povoadas por anónimos, mas, sobretudo, por indivíduos que mutuamente se ignoram, seguindo cada um o seu caminho. Aqui não é o primado da pessoa que se afirma, antes o primado de um individualismo cego para tudo o resto que não sejam os próprios interesses. E se não se afirma a solidariedade social, afirma-se, isso sim, a asfixia da Grei. Desde logo faz lembrar o Cristianismo e o seu empenhamento, o rifonário e a sua filosofia e Brecht e a sua militância. (“Se não participas na luta, participas na derrota”, diz este).

…Não é o primado da pessoa que se afirma. Não importa que seja o amarelo (a representação cromática de Deus, do Divino, da Inteligência) a chamar-nos a atenção para o Excelso. É como se o Divino estivesse tanto presente como ausente, tão presente como inexoravelmente abscôndito.

É como se a imanência tudo subvertesse e nos situássemos num ponto de viragem só possível com a mais viril das determinações.

A polis já não é polis. As casas já não são térreas, já não respiram da terra; os seus habitantes já não são uma parentela. A polis é uma nostalgia a que o próprio azul – a cor da serenidade, do contentamento –, por isso, já não assenta bem. É um azul de tons diversos, mais ou menos carregados, não um azul homogéneo, inexpugnável, o genuíno da Hélade, esse ponto culminante do espírito humano a partir do qual as mais prodigiosas desenvoluções se tornaram concreção.

Não importa que se viva num lugar com a dimensão da Guarda: este individualismo oco e ocoluso também aqui está a dar-nos uma pletora que amarfanha a venerável beleza da nossa Sé. Com efeito, já não há teocentrismo algum, o Sagrado já não é o fanal das nossas vidas – pelos menos da generalidade da população –, visto que a impressionante beleza do templo gótico e manuelino, pura e simplesmente é… um flanco, uma concreção arredada (o quadro mostra-o claramente), no seu ponto mais alto nitidamente separada do burgo. Adaixo insere-se na grande linha dos interventores sociais. Simplesmente a sua intervenção não é, v.g., a de um Millet ou Daumier, esses “realistas” que, crua e/ou compungida ou ostensivamente, chamavam a atenção para a dor e o erro do seu tempo; também não é a dessa figura cimeira dos tempos hodiernos que é Tàpies, v.g.

Não. A intervenção de Adaixo dirige-se aos mais altos espíritos, aos que ele muito bem sabe que vibram nos píncaros, porque, digamos, sabem tudo e vêem tudo ou, caso ainda não se situem nesse topo, estão – determinadamente – no caminho certo para tal topos – do qual têm uma incoercível consciência.

A intervenção emana agora dos polimorfos que reúnem em si um vasto saber e uma vasta actualização, que ultrapassaram há milhões e milhões de “anos” as certezas do Positivismo, que vivem num mundo de hiperestesias, intuição, discreção, esotéricas cumplicidades. A intervenção emana agora dos multímodos, simultaneamente tópicos e cosmopolitas, poéticos e práticos, viris como os das Termópilas e flexíveis como a inteligência omnidesperta.

Ao dirigir-se a tão conspícuo escol, ao ser fautor de um tão Supremo Bem, a nossa gratidão para com tal artista é imarcescível; e, todavia, a nossa gratidão não se fica por aqui. Com efeito, há obras de uma espantosa estética, tão clara é a emoção que nos acciona. O Vitral Partido e Em Forma de História aí estão a afirmá-lo.

Os madrilenos querem transformar a sua cidade em capital mundial da pintura. Adaixo – com absoluta tranquilidade – pode lá estar.

A Guarda, que produziu um Jerónimo Brigas – cuja dimensão os salamantinos pronta e devidamente identificaram –, que tem outra figura cimeira chamada Maria Oliveira, aumenta a parada com este professor de Filosofia.

Os directores bancários da nossa cidade bem podem – com absoluta serenidade – chamar a atenção para os curadores artísticos das suas instituições, a fim de virem à Guarda fazer compras para, depois, as exibirem nas suas acções culturais e/ou de mecenato. De Brigas, pelos vistos, já nada há para vender, mas Maria Oliveira e Adaixo seguem, pujantemente.

A exposição encontra-se na Livraria D. Sancho, de ex-aluna e agora colega, a Drª Emília Barbeira; Adaixo também foi meu aluno. Transbordo de satisfação e os egitanienses que não percam este banquete.

Guarda-2-XII-06

Por: J. A. Alves Ambrósio

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