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Caminhei

Caminhei! “Caminhar para ele é um passeio sem destino, uma raiva que se transmite aos pés, uma zanga de que se sai para pensar, para não magoar” – esclareceu-me outro interveniente. Caminhei! Disse-me ele outra vez preparando o discurso seguinte. O tipo tratou-me muito mal. Sou de chegar a horas, de sair com o trabalho acabado, de cumprir, ver e calar. Sabe que o mais difícil é o silêncio? Ver, perceber o mal e calar? Pois o tipo aos berros acusou-me de tudo. Que a parede não estava certa, que o chão estava irregular, que o estuque não aguentava, que o mosaico não era aquele. Mas tudo aos gritos, tudo muito exaltado. Eu trabalhei para este homem dez anos, e aguento salários que tardam, aguento horas a mais, aguentei lugares onde dormíamos mal e com frio. O tipo aos gritos e sem razão. Pegava-me num braço. Venha ver, mostrando o estuque, esmurrando a parede, venha aqui e pisava forte o mosaico, pontapeava o ladrilho. Eu fiz isto como se fosse para mim. Quando chegaram não estava porque caminhei! Precisava perceber, precisava cair em mim. Chorava. Havia um homem no chão. Havia um rio de sangue no ladrilho da cozinha. Havia um empresário a menos. Falido estava ele, mas não foi por mim. Exaltado ainda. Um homem morto, outro porque tinha matado, uma casa inacabada. Coloquei-lhe as algemas e saímos.

Por: Diogo Cabrita

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