Na estação de Coimbra-B presenciei, há uns tempos, uma cena em que uma família, por meio do pai, pedia, de forma alterada, a um funcionário da bilheteira o livro de reclamações. Numa primeira avaliação parecia-me que seria mais um daqueles emproados que estaria a descarregar as suas frustrações sobre o pobre funcionário. A indignação do pai aumentou quando o funcionário, na casa dos 50 anos, lhe disse que não teriam o referido livro. Após análise mais correta da situação por minha parte, uma vez que acabava de me juntar à fila para comprar bilhete, tudo ficou mais claro. Estávamos perante um “burrocrata”, esta subespécie de funcionário público, incapaz de flexibilidade mental para adaptação a novas situações que não constem do seu estrito conjunto de regras e leis, que o espartilham, e que fazem um inferno o dia a dia do cidadão comum. Este caso anda à volta do facto de, nalguns comboios da CP, o cartão de estudante dar uma redução significativa no preço do bilhete a quem for portador do mesmo na altura da compra dos bilhetes. Esta família tinha dois filhos, com 7 e 12 anos, mas que não tinham os tão preciosos cartões de estudante, pelo que o funcionário da bilheteira não lhe queria vender os bilhetes a preços convidativos. Não sei como a conversa acabou porque, entretanto, comunicaram-me que o regional para a Guarda tinha sido suprimido devido a mais uma estúpida e irresponsável greve de maquinistas. Mas o que o cidadão estava a tentar explicar era o óbvio para ele, mas não para o funcionário: com estas idades, obrigatoriamente, todas as crianças deverão estar a frequentar a escola e mesmo que, por incúria dos pais, o não estivessem a fazer, fá-lo-iam à força pois, o Estado, através das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, substituir-se-ia aos pais. Desta forma a obrigatoriedade da amostragem do cartão de estudante (não do cartão do cidadão, claro), para alunos dentro da escolaridade obrigatória, para obtenção do desconto para estudantes é estupidamente redundante.
Mas serve esta história para tentarmos perceber algumas coisas: que algumas regras superiormente emitidas, sem a devida ponderação, para o funcionamento desta e de outras empresas públicas podem atrapalhar quando pretendem ajudar os utentes; que a CP continua a perder passageiros e a dar prejuízos de milhões e esta é apenas mais uma das razões para tal estar a acontecer; que a simpatia e não a antiguidade deveria ser o primeiro critério para alguém que lida com centenas de pessoas por dia, pois a antipatia é geradora de conflitos; que saber relevar algumas regras absurdas, mesmo que impostas, é um sinal de inteligência e no presente caso era gritante a incongruência entre a regra e a realidade.
A CP é insustentável, pede empréstimos atrás de empréstimos, pagos por todos nós, que são em grande parte para salários, o mínimo que deveria dar em troca era um serviço de excelência virado para a total satisfação dos utentes. Mas, no meio de tantas maçãs podres, há muitas que resistem e estaria a ser injusto se levassem todos pela medida grande. Há bons e maus funcionários na CP, assim como há professores, médicos, polícias, juízes, advogados e até políticos e, quando já tinha perdido a esperança de encontrar dos bons, aconteceu-me o que a seguir vos conto. Depois de ter percorrido de bicicleta os 48 km da Ecopista do Dão, cheguei com os meus filhos e dois sobrinhos à estação de Santa Comba Dão para os “despachar” no comboio regional (aqui está uma medida muito positiva: nos comboios regionais podem-se transportar bicicletas sem qualquer custo adicional, contribuindo para a mobilidade sustentável). Na impossibilidade de provar a idade inferior a 12 anos dos meus sobrinhos, que lhes dava direito ao pagamento de meio bilhete, interpelei o revisor antes de entrarem a bordo. Era um indivíduo novo, simpático e prestável. Perguntei-lhe se me poderia vender os meios bilhetes na condição do pai dos miúdos fazer prova da sua idade à chegada à Guarda. Confesso que não tinha, à partida, muita esperança, atendendo à cena, umas semanas antes, em Coimbra, mas este afável revisor devolveu-ma, deixou os miúdos e bicicletas seguirem viagem, condicionalmente, com os meios bilhetes e disse-me para ir descansado que os manteria debaixo de olho e eu voltei tranquilo a Viseu buscar o carro e com esperança renovada nas pessoas. Tínhamos encontrado um funcionário com qualidades que rareiam, empatia e alteridade, e isso proporcionou-nos um resto de dia muito diferente do que terá tido aquela família em Coimbra.
Por: José Carlos Lopes