Arquivo

Burocracia sim, burocracia não

Opinião

Quando actualmente se fala de “burocracia” nas escolas e se lhe aponta o dedo acusador, a maior parte esquece-se que foi a burocracia que fez avançar o mundo, que foram os “papéis” que permitiram o gizar dos planos, que instituíram etapas, que desenharam as cidades, que fixaram o saber. A palavra actualmente ganhou um sentido pejorativo tal que qualquer formalização antes da acção cheira logo a “coisa que não serve para nada”.

Quando os professores dizem que fazem papéis a mais, eles referem-se quase sempre a realidades que nunca puderam dominar em toda a sua profundidade por falta de formação (hetero ou auto) e que por isso constituem uma coisa estranha, transformando-se por isso em “papelada”. Mas essas realidades só por isso não deixam de ter o seu valor potencial, sobretudo do ponto de vista organizativo. Vou dar dois exemplos. É o caso dos Planos de Recuperação e de Acompanhamento no Ensino Básico, feitos sempre “de pé atrás” na lufa-lufa dos Conselhos de Turma porque supostamente bastaria dizer aos meninos que devem estudar, sem ter de gizar estratégias adaptadas aos seus problemas e assumidas por eles. É também o caso dos Projectos Curriculares de Turma, uma verdadeira “maçada” que afoga os professores em papel no início do ano sem que a maioria lhes veja qualquer vantagem. E no entanto eles podem ser o campo perfeito do diagnóstico dos problemas da turma e do seu combate. Sem complicar mais do que a medida certa. Nestes dois exemplos se vê aliás que o que falha é o diagnóstico fiel dos problemas e uma ideia clara para a actuação. Se falta tempo é para isso, não podemos culpar os papéis.

Isto só significa que antes de serem papel estes Planos ou Projectos deviam fazer o seu caminho num esforço pessoal (do professor) e inter-pessoal (na colaboração entre pares e com os pais e alunos). Tal como estamos, nestes casos, os papéis são mesmo só papéis, palavras a fingir que se faz sem se fazer (e portanto a mais). A formação de professores nestes anos todos de formação contínua “a fazer de conta” também não tem ajudado onde devia ajudar. Para que esses papéis fossem mais palavras a apontar para actos e menos folhas vazias de sentido.

Em outros casos são as próprias instituições que não se defendem da burocracia: nos referidos Projectos Curriculares de Turma continuam os professores a copiar em cada turma as planificações anuais comuns aos diversos professores e às diversas turmas, quando podiam simplesmente disponibilizá-las na Net através dos Departamentos. No caso das Fichas de Auto-avaliação dos alunos, “folhas para arrumar”, dizem alguns professores, não se verifica no entanto um esforço de simplificação, tornando-as mais curtas, não querendo abranger tudo: ou a auto-avaliação dos alunos não é necessária? No caso da informação sobre faltas enviada aos pais, a obrigatoriedade, que já vem desde 2002, de informar regularmente os pais das faltas não justificadas pode não equivaler necessariamente à obrigatoriedade de, em cada informação, seguir carta registada e aviso de recepção (que ficariam reservados para os casos-limite). Antes da segurança deveria vir a confiança e, aí sim, a recusa da “burocracia”.

Muitas vezes a “burocracia” não é mais do que o sintoma de uma recusa de mudança do professor relativamente ao perfil de profissional que o Estado ou a sociedade esperam dele. Isso pode ficar para outro texto.

Joaquim Igreja (professor)

Sobre o autor

Leave a Reply