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Brumário

1. Aconteceu. Finalmente, mudou o poder na Guarda. Ou seja, parafraseando Eça, mudaram as fraldas, porque o seu conteúdo já tresandava. O mérito da campanha da candidatura de Amaro e a canalização do voto do protesto para a realidade local não apagam a voragem suicidária do PS, nos últimos 10 anos: falta de liderança, chefes partidários medíocres e paroquiais, incúria e desleixo com que a autarquia tratou a Guarda, ausência de estratégia, prepotência, autismo, descontrole nos gastos e na gestão dos recursos, negócios desastrosos para o interesse público… Muito haveria a apontar e muitos já o fizeram, pelo que não vou entrar em redundâncias. Palavras cheias como esperança e competência é o que interessa para já. Mesmo assim, é fundamental perceber, de um ponto de vista instrumental, porque é que a Câmara mudou de mãos. E, em vez de longas tiradas analíticas, nada melhor do que apresentar um caso real, vivido por um munícipe, ao pretender requalificar uma casa numa localidade do concelho. Naturalmente, a culpa não morre também aqui solteira. Ou seja, a burocracia não é um exclusivo da Câmara, sendo um atributo do aparelho administrativo em geral. No entanto, para bom entendedor… Eis então a via sacra de longo e dispendioso calvário que qualquer um poderia percorrer: abastecimento e esgotos: €1677,18; ligação ao contador da água: €17,50; Imposto de selo: €5,00; Projecto de arquitectura: €2000,00; fiscalização: €1000,00; requerimento: €6,00; Arqueologia: €250,00; requerimento pedido de licenciamento: €12,00; emissão de alvará: €137,28; pedido de isenção projecto gás: €17,18; pedido de ocupação da via pública: €183,24; prorrogação da obra: €51,26; prorrogação da ocupação da via pública: €33,24; projecto de instalação eléctrica: €1522,29; certificação acústica: €210,33; certificação telecomunicações: €300,00; requerimento pedido licença de habitação: €17,18; levantamento licença de habitação: €68,00. E pronto, é só fazer as contas e imaginar o tempo e a paciência que este suplício tomou ao incauto cidadão, que só pretendia a tranquilidade que uma aldeia ainda proporciona.

2. Um destes dias, por mero lapso técnico, não fiz zapping quando começou um episódio de uma telenovela que dá pelo nome de “Beirais”, logo a seguir ao noticiário. Tirando algum partido da anormalidade da situação, resolvi observar durante 15 minutos o produto televisivo. A coisa é realmente muito má. Mas o mais surpreendente (quase cómico) é a falta de credibilidade dos personagens e dos actores. Ou seja, nunca deixam de ser urbanos desterrados num recanto da província, onde esforçadamente reproduzem os hábitos nativos, os tiques, as idiossincrasias, o modo de comunicar, etc. Graças a isto, vemos um registo cabotino, inverosímil, surreal, com laivos de comicidade. E um cenário que mais não é do que uma aldeia-modelo, uma fantasia do que deve ser uma povoação no Portugal profundo, a projecção fantasmática de uma recôndita ruralidade que subsiste em todo o português citadino. O que realmente choca, numa produção deste tipo, é ninguém se ter dado ao trabalho de perceber que, em Portugal, fora dos grandes centros urbanos e, sobretudo no interior, a relação com o tempo é diferente, alguns laços e práticas de reforço da coesão social ainda existem, o paternalismo bem pensante é detestado, os seus habitantes não são exactamente bons selvagens mimetizáveis por uma equipa de urbanitas com a consciência pesada!… Ou seja, como é sabido, o “melting pot” das áreas metropolitanas, mas sobretudo da capital, foi composto por obra e graça da migração interna. Sucede que, de vez em quando, a saudade do paraíso perdido aperta. Mas o paraíso está longe de ser encontrado nas berças deixadas para trás. Ou melhor, ele está lá, não porque se imagina “ainda” lá estar, mas porque resiste. E quando não se percebe o que lá está, copia-se para o que lá não está o que se julga nunca ter deixado de lá estar. Daí o ridículo e a fraude desta produção. O “Portugal dos Pequenitos” ainda se entende. Estas romagens de saudade de gente urbana, muito trendy, numa “província” que não existe, são a continuação, em modo televisivo/consumista, do folclorismo e dos concursos de aldeias “portuguesas”, promovidos pela SNI de António Ferro, entre 1938 e 1942. Ora, o tempo próprio do Portugal do interior é o do cinema. Nunca o da televisão. Por isso, os filmes de Margarida Gil o retrataram tão bem. E também, por isso, as reportagens televisivas de Jorge Pelicano que se fazem passar por documentários são o que são. Portanto, o frenesim urbano e estandardizado, aplicado, mesmo que com a melhor das intenções, mas de modo absolutamente incompetente, num contexto ruralizante, só podia dar numa valente gargalhada e muita condescendência. Afinal, o provincianismo dá-se bem nos locais mais improváveis…

Por: António Godinho Gil

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