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Bem hajas Marco Polo

Era um país à beira-mar. Marco Polo olhou com um espanto inversamente proporcional ao da leveza com que o barco se aproximou da costa de vidro. Viu bandeiras de sangue e verde, hasteadas em linha, como fantasmas desesperados e inquietos. Os seus pés pousaram na terra instável onde os homens e as mulheres deitados olhavam os deuses. Sabia-se que naquela terra os homens ficaram mudos porque a lei do orador, do filósofo, os impedira de falar em tempos, e eles calaram submissos. O filósofo estava sentado na cadeira dourada que encimava o palco do porto, o palco daquela terra. Viu 16 discípulos vestidos de fios que lhes entrelaçavam os corpos e formavam uma rede apertada, com a qual o filósofo se protegeria caso, inebriado com o seu eloquente discurso, viesse a cair da cadeira. Havia outros fios que, ligados à rede de primeira ordem, amparavam outros homens, aqui e ali entre a multidão deitada, segurando-os contra a fome acelerada do pântano em que o país se transformara. Mas a rede formava alvéolos de gente desprotegida e enclausurada. Todos os fios se ligavam à perna da cadeira que por sua vez se ligava ao topo de uma coluna de ferro, emergida do mar, que aparecia pontiaguda com letras colocadas na vertical, expressando “submarino de salvação da pátria”. Marco Polo percebeu a proximidade do “zarpar” que levaria apenas os Homens ligados pela rede e temeu pelo futuro dos outros, estendidos nos alvéolos, os jovens de olhos abertos para o céu, num misto de hipnose e irritação provocados pela eloquência do orador máximo. E viu a fraqueza dos Homens do Ocidente, que as suas viagens quase tinham feito esquecer, estendida sobre os corpos deitados. Queria explicar àquela gente que ao deitarem-se na terra olhando os deuses no céu, a terra não respira e morre por dentro. Nada cresce senão o medo e a raiva por nada crescer. Queria dizer-lhes que eram capazes de cortar os fios e passar por entre a rede que os inquinava e brevemente os mergulharia no pântano. Queria gritar-lhes que ninguém senão eles poderia afundar o palco no mar e deixar a terra respirar outra vez…Mas eles continuavam a olhar o céu…alheios à sua presença. Que lhes teria dito o filósofo, que agora dormia no conforto da periclitante cadeira dourada forrada de poder? Talvez pensem, com os seus cérebros silenciados e os corações fragilizados, que a rede de fios os protege porque os abraça…Parecem não ver que apenas os coíbe de seguir, crescer, criar… que simplesmente os prende, impedindo-os de se lançarem ao desconhecido como outrora souberam fazer. Um ruído quebrou o silêncio. Mas nem a aparatosa queda da cadeira os fez erguer e Marco Polo partiu com a sensação de que aquela terra poderia já não existir.

Mas à medida que o barco do explorador desaparecia na linha quente do horizonte, accionou-se uma memória que fez renascer as mentes nos corpos. Ergueram-se os Homens em colectivo contra a teia que submergiu no fundo do mar com o palco, os homens enredados e a sua pátria salva. A terra existia outra vez e nessa noite ninguém se deitou…

Por: Cláudia Quelhas

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